“O ‘Brexit’ soterrou completamente o sistema político britânico”

O mais “chocante” é que não há “nenhuma razão óbvia” para as objecções contra a UE ou o acordo de saída, diz a directora do Centro Robert Schuman do Instituto Universitário Europeu. “O Reino Unido agora é uma pantomina”, lamenta.

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PATRICK SEEGER/EPA

A irlandesa Brigid Laffan, directora do Robert Schuman Centre do Instituto Universitário Europeu, em Florença, tem assistido “chocada” ao desenrolar do processo do “Brexit”, um desafio que fez o Reino Unido mergulhar numa crise política e constitucional profunda, que vai prejudicar seriamente a economia e que tem o potencial de desestabilizar a situação na ilha da Irlanda, duas décadas depois do fim do conflito sectário entre nacionalistas e unionistas.

Para a reputada professora de Ciência Política, que também dirige o programa de Governação Global do IUE por onde já passaram vários governantes e altos dirigentes da União Europeia, o mais “chocante” é que não haver “nenhuma razão óbvia” para as objecções levantadas contra a UE ou o acordo de saída. “Chegámos a uma daquelas situações em que se está a agir com base numa ideia, numa crença, que não tem qualquer relação com a realidade.”

“O Reino Unido agora é uma pantomina”, lamenta.

Até que ponto podemos considerar “extraordinário” que a duas semanas do “Brexit” ainda não haja uma clarificação do Reino Unido sobre a forma como pretende separar-se da União Europeia?

É realmente extraordinária a forma como o Reino Unido está a encarar aquela que é a maior mudança do regime desde a guerra. O “Brexit” seria sempre um desafio difícil, mas se tivesse sido feito um debate nacional após o referendo, sobre o que se pretendia, sobre as escolhas e as prioridades, talvez houvesse alguma esperança. Mas o que aconteceu foi que o simples acto de tentar concretizar o “Brexit” acabou por soterrar completamente o sistema político britânico. E o que desde o início já era um empreendimento difícil tornou-se numa crise política que agora evoluiu para uma crise constitucional.

E agora já não há esperança?

Da última vez, o acordo negociado por Theresa May foi derrotado por 230 votos. Desta vez, foi por 149 votos. Não vejo como a primeira-ministra pode manter-se no cargo. Na história política britânica, nunca um Governo conseguiu sobreviver a derrotas deste calibre no Parlamento. A crise constitucional é tão profunda neste momento que alguma coisa vai acontecer. Mas não sei o que vai ser. Aliás, no dia de hoje, acho que ninguém sabe.

Theresa May poderá demitir-se? Para já não deu nenhuma indicação de que pretenda sair.

Exactamente. Mas depois desta noite por quanto tempo mais pode ela continuar, depois de ter ver o seu grande plano chumbado por mais de cem votos?

O presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker, disse que se o Parlamento britânico rejeitasse o acordo não teria uma terceira oportunidade, que era “isto” ou “nada”. O que podemos esperar agora?

A minha expectativa é que agora a Câmara dos Comuns vote contra o no-deal [esta quarta-feira] e que depois vote a favor da extensão do prazo do artigo 50º [na quinta-feira]. O assunto passará então para a mesa do Conselho Europeu da próxima semana, que terá de decidir. A não ser que os britânicos digam exactamente para que querem a extensão, acho que os líderes lhes vão dar pouco tempo, talvez até às eleições europeias. Eu acho que eles precisam de mais tempo, mas também acho que a UE só estará disposta a prolongar muito o prazo se for para o Reino Unido organizar uma nova eleição ou um novo referendo. Mas mais uma vez, neste dia, ninguém pode dizer claramente o que vai acontecer a seguir.

É o polémico backstop que está a impedir o Reino Unido de ratificar o acordo de saída, ou esta é uma crise com raízes mais profundas e a questão da fronteira era um argumento útil para justificar o impasse?

backstop tornou-se problemático porque é na na fronteira da Irlanda que o fenómeno do “Brexit" bate de frente com a realidade. Como pode haver comércio sem fricções com a UE, se o Reino Unido não quer ser membro da união aduaneira, nem pertencer ao mercado comum nem reconhecer a jurisdição do Tribunal Europeu? Portanto, a realidade do que o “Brexit" representa manifesta-se de forma muito aguda na fronteira. O facto é que os britânicos ainda não foram capazes de escolher entre manter uma maior proximidade da UE, que implica acatar mais regras, ou entre uma maior distância da UE, que lhes permite mais divergência mas tem um custo económico. Até isto se resolver, o “Brexit" vai continuar a criar uma crise política e constitucional. E vai prejudicar ainda mais a economia: o país já começou a perder empresas, o investimento está em queda, a produção automóvel está ameaçada. Para já, não vejo nenhuma perspectiva de o Reino Unido regressar a algum estado de equilíbrio ou estabilidade. É realmente chocante o que está a acontecer a um dos mais estáveis países europeus.

Mas mais cedo ou mais tarde vai ter de existir uma solução.

Esta crise é inteiramente política: começou no partido Conservador britânico e agora espalhou-se por todo o sistema político britânico. Para já não vejo um fim. A não ser que no próximo mês o choque do que está a acontecer no país comece a mobilizar as pessoas e os actores políticos. Você é portuguesa, eu sou irlandesa — nós sabemos como foi quando chegou a crise do euro e tivemos os programas de assistência e a troika… Os nossos países passaram por um período muito difícil, mas os nossos políticos pelo menos tentaram comportar-se de forma responsável e agir em nome do país. Mas agora no Reino Unido é uma pantomina! Para mim isso é profundamente chocante, que um país possa perder desta forma a sua âncora.

Voltando à questão irlandesa. Até que ponto a actual indecisão pode servir para despertar o conflito sectário? Podemos correr o risco, por exemplo, de assistir a novas movimentações paramilitares?

Na Irlanda o que aconteceu foi que o mercado único e o Acordo de Sexta-feira Santa fizeram a fronteira desaparecer. Ela continuou lá, mas deixou de desempenhar um papel na vida quotidiana. E as comunidades que vivem de cada um dos lados daquela fronteira jamais consentirão que a fronteira física seja reposta. Não estou a falar de grupos paramilitares, estou a falar das pessoas comuns, na sua vida diária, que nunca aceitarão voltar à situação anterior. Por isso não pode haver a reintrodução da fronteira visível. E por isso sim, é perigoso. Não penso que a desestabilização fará regressar a violência paramilitar de grande escala. Mas vai envenenar a confiança — aliás, já o fez — e vai colocar uma sociedade que ainda é demasiado frágil debaixo de muito mais tensão.

E não já, mas a longo prazo, poderá conduzir à unificação da Irlanda, que é totalmente desnecessária. Os nacionalistas na Irlanda do Norte podiam viver bem com não fazer parte da República, porque a fronteira era invisível. Mas agora o “Brexit” torna-a visível outra vez. Para mim, o “Brexit” tem o potencial de desestabilizar toda a ilha. E sem qualquer razão. Se eu achasse que alguma das alegações dos brexiteers sobre o potencial para o Reino Unido fora da UE fosse minimamente credível, não sentiria tanto desdém pelo seu comportamento. Mas eles estão a fazer isto sem nenhuma razão óbvia ou nenhum benefício — a não ser para eles próprios. Chegamos a uma daquelas situações em que se está a agir com base numa ideia, numa crença, que não tem qualquer relação com a realidade.

E do lado da UE, a abordagem poderia ter sido diferente? Bruxelas foi realmente intransigente, como se queixam os britânicos?

Não. Acho que a UE foi extremamente estratégica, e não podia deixar de ser assim. Porque se um país pudesse sair numa situação de “ter o seu bolo e comê-lo” [have your cake and eat it], mantendo só as coisas positivas e nenhuma das obrigações da UE, então porque é que algum outro país continuaria no clube?

Penso que a UE genuinamente devia recusar o papel de bode expiatório. O “Brexit” foi uma escolha britânica, não foi imposto. E a UE tem sido incrivelmente paciente. Só quero ver o que aqueles que se queixam da UE vão dizer quando o Reino Unido for negociar um tratado comercial com os Estados Unidos. Os EUA vão comê-los vivos. Vão dizer-lhes: ou vocês mudam as vossas leis de segurança alimentar para nós podermos vender os nossos frangos lavados com lixívia ou não há nada para vocês…

Não acha que o Reino Unido já está prejudicado mesmo antes de negociar? Depois da forma como Londres conduziu o “Brexit”, é difícil ver futuros parceiros comerciais a terem muita confiança nos britânicos durante as negociações…

Penso que o Reino Unido vai sentir enorme dificuldade em negociar acordos comerciais que os beneficiem mais do que aqueles que tinha como membro da UE. Nas negociações comerciais o tamanho e a geografia são fundamentais. Tanto os EUA como a China vão exigir que eles paguem um preço elevado. E a tragédia, para mim, é que esse custo vai ser suportado pelos mais pobres. Não vai ser Rees-Mogg, que tem milhões, ou Boris Johnson. Vão ser os que não têm nada.

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