O que fazer agora com Michael Jackson?

Talvez tenha abusado sexualmente de crianças como é alegado em Leaving Neverland, mas a sua música não constitui abuso.

Passamos o tempo a nomear heróis e vilões, carrascos e vítimas, num terreno minado de opiniões totalitárias onde não existe grande espaço para tangentes. E no entanto elas existem. Leia-se por exemplo The Girl: A Life in the Shadow of Roman Polanski (2013) de Samantha Geimer, a mulher que aos 13 anos foi violada pelo realizador de cinema Roman Polanski, então com 43 anos.

O livro, e as entrevistas que se seguiram, são exemplos de como Geimer coloca cá para fora pensamentos densos que não encaixam em gavetas fáceis. E fá-lo não porque esteja traumatizada demais para pensar claramente, mas porque não suporta a simplificação do mundo. E é isso que atordoa a maior parte das pessoas. Ela não se colocar numa qualquer prateleira. Não absolve Polanski, mas também não condena o realizador. Não se culpabiliza a si própria, mas não receia analisar-se. A sua luta tem em conta a agressão de que foi alvo, mas também o olhar redutor onde a tentam colocar a todo o momento.

Na maior parte das vezes não estamos preparados para as matizes. Quando O Pianista de Polanski foi nomeado para os Óscares, ela pediu que a Academia de Hollywood julgasse o filme e não o homem, assinalando que isso não significava anular a sua zanga. Quando um terapeuta num programa de Oprah disse que ela sofria de culpa da vítima, Samantha replicou que era uma análise paternalista.

É uma luta difícil, acinzentar a realidade, quando à volta toda a gente deseja o preto-e-branco. É justo dizer-se que o documentário Leaving Neverland (2019), centrado nos relatos de dois homens adultos que alegadamente terão sido abusados sexualmente, em crianças, por Michael Jackson, tenta produzir o mesmo efeito de complexificação. O que vemos é credível, até nas contradições apresentadas, como acontece em cenários de sedução com mais zonas acinzentadas (misto de vergonha, hesitações, medo e amor), do que tendemos a aceitar. Embora se possa questionar os vazios. O que acaba por não estar inscrito no filme. Uma coisa parece certa: não é um documento que procure apenas a empatia emocional. Faz-nos pensar. O que é coisa rara.

Um dos aspectos mais inquietantes é que aquilo que nos é devolvido, de forma pormenorizada, acaba por nos apanhar desprevenidos, mas só até certo ponto. O que é descrito até pode não ser a verdade, mas se o for não é uma surpresa total. Não eram apenas aquelas crianças que, na altura, não estavam prontas para decifrar os sinais. Éramos nós também, como colectivo, que não quisemos contemplar esses mesmos sintomas, absorvidos que estávamos perante a narrativa da criança-homem, que nunca foi capaz de ter uma infância comum, instrumentalizado pelo pai, e que foi organizando a sua vida numa espécie de bolha.

Por outro lado idealizamos as celebridades que admiramos. Esquecemo-nos que são apenas pessoas, múltiplas, com fragilidades e capacidades. O que não significa, como tantas vezes é reiterado, que se possa separar a pessoa do artista. Aos artistas pede-se o mesmo que a qualquer ser humano: que seja fiel à sua humanidade. Algo diferente é avaliar se um comportamento socialmente censurável é reproduzido na obra de um artista. Nesse campo as hipóteses, as tangentes e tensões são múltiplas.

Polanski tem filmes tocados por um humanismo tocante, o que não invalida o seu acto censurável. Michael Jackson poderá ter cometido abuso sexual, mas a sua música não é pedófila. Daí que careça de sentido a proibição de ela ser ouvida publicamente. Pode-se aprovar a obra de alguém que alegadamente poderá ter cometido abusos sexuais. Outra coisa seria validar uma obra que patenteasse ou reflectisse abusos sexuais. O que não é o caso.

Mas existem casos de fronteiras incertas. O escritor Céline, por exemplo. Era anti-semita e parte da sua obra também o era, por isso o que é exigível nesses casos é haver uma perspectiva global sobre a sua produção, enquadrando-a. Um olhar que não é o do passado. Mas sim como esse passado pode ser pensado no hoje.

O que se deve fazer no caso de Michael Jackson é reenquadrá-lo também. Sempre que se falar dele será importante referir que a justiça não deu como provados os actos de que é acusado, mas dez anos depois da sua morte, e perante as novas versões vindas agora a público, é quase inevitável que cada um crie uma convicção sobre a sua pessoa. Já a obra permanecerá, podendo ser até reanalisada ou repensada, mas nunca silenciada.

Os temas de abuso sexual são sensíveis. Geram uma grande empatia emocional. O mesmo se pode dizer dos processos de idealização das celebridades. Não é fácil pensá-los com nuances, apalpando o desconhecido, que é qualquer coisa que nos assusta. Por um lado queremos perceber, por outro assusta-nos não perceber. Nesse sentido o posicionamento de Samantha Geimer é um exemplo. Não perdoa intimamente ao homem que a violou, mas é capaz de ao mesmo tempo olhar para o todo, renunciando também ao reducionismo onde a tentam colocar e a Polanski, fazendo-nos pensar.

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