No solar da raça de Miranda todos querem ver mais vacas a pastar

Ninguém quer ouvir falar em redução de efectivo quando, pelos seis concelhos onde se produz uma das mais reconhecidas raças autóctones de Portugal, se acha que há espaço para aumentar a produção de gado “de qualidade”, que assegura a manutenção do ecossistema e da paisagem.

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António Granjo é o dono do Parador de Miranda ADRIANO MIRANDA
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João Choupina é formalmente produtor de gado bovino mirandês há 20 anos. Na verdade, e uma vez que está a seguir as pisadas do pai, que já tinha uma exploração, sempre teve a sua vida à volta da vida das vacas, dos touros e dos vitelos. Sempre foram os animais a dar-lhe sustento, continuam a ser os animais a sustentar os estudos dos dois filhos, que andam no Instituto Politécnico de Bragança. Com 42 anos de idade, Choupina ainda se considera um jovem agricultor, porque quando olha para o lado, e para a idade dos quase 350 associados que representa, vê que a maioria tem mais de 65 anos de idade.

“É difícil convencer os jovens a pegar neste tipo de trabalho, também ainda não sei se vou conseguir convencer os meus filhos”, antecipa. Mais ainda quando há noticias que chegam lá de Lisboa, e que acabam sempre por ser muito negativas. “Estamos todos com vontade de aumentar o efectivo, e a trabalhar para isso, para preservar uma raça que está ameaçada de extinção. E o ministro vem falar de reduzir? Não se percebe”, começa logo por criticar.

O presidente da Associação de Produtores reage às declarações do ministro do Ambiente e da Transição Energética, quando apresentou no roteiro para a neutralidade carbónica de Portugal a intenção de reduzir a produção de gado bovino. João Choupina tem uma exploração com cerca de 80 vacas mirandesas em Macedo de Cavaleiros, um dos seis concelhos que compõem o chamado Solar da Raça. O berço desta carne começou na Terra de Miranda, a área em que se fala a língua mirandesa, num espaço que corresponde a pouco mais que o concelho de Miranda do Douro. A interioridade e o isolamento daquela terra ajudou a preservar não só a língua, como também a raça.

No início do século passado a robustez deste gado, e o seu poder de tracção, permitiram que ela se espalhasse por todo o país. Mas à proporção do aumento dos tractores agrícolas, foi-se diminuindo o efectivo. E hoje em dia, a raça Mirandesa é uma das 15 raças autóctones do pais, e a sua carne tem denominação de origem controlada – só é carne mirandesa o gado que nasce nos seis concelhos do solar, e com árvores genealógica completamente rastreada: para além de Miranda, pertencem ao solar os concelhos vizinhos de Vimioso, Mogadouro, Bragança, Vinhais e Macedo de Cavaleiros.

Actualmente existem cerca de 5100 vacas mirandesas e 250 touros, sendo que mais de 80% do efectivo está nos concelhos que compõem o solar. É, por isso, “uma raça ameaçada”, como confirma Valter Raposo, secretário técnico da Associação, e responsável pela execução do Plano de Conservação e Melhoramento Genético da Raça. “Uma raça com cinco mil cabeças não pode deixar de ser considerada ameaçada. Basta imaginar um surto de uma doença, e percebe-se que rapidamente fica dizimada”. Se a associação se tem empenhado em fazer o melhoramento genético, monitorizando o desempenho dos touros e o crescimento dos vitelos, o veterinário percebe desde logo outra coisa: “Se calhar, estão é preparar-se para baixar os apoios à perda de rendimento aos produtores. Vem aí um novo quadro comunitário, e parece que pretendem usar o gado bovino como bode expiatório”, antecipa Valter Raposo.

Por cada fêmea mantida em linha pura, um produtor recebe por ano 140 euros. E, dizem, são estes apoios que tornam a produção sustentável. “Não são subsídios aos agricultores. São perdas de rendimento. Se nos tiram isto, vamos todos começar a comer toucinho”, ironiza Valter Raposo. Enquanto isso não se confirma, convivem, para já, com as dificuldades de quem se quer instalar e criar uma exploração. Porque há espaço e interesse em aumentar a produção, assegura João Choupina.

Os responsáveis que integram a Associação de Produtores estão à frente de 350 explorações, tendo cada uma delas, em média, cerca de 30 fêmeas e um touro para coberto. Cada fêmea, se tudo correr bem, tem um vitelo por ano – a gestação dura nove meses – e este fica a ser alimentado em exclusivo pelo leite da mãe até aos quatro ou cinco meses, e é depois alimentado com algum suplemento de cereais produzido no Solar. As definições da Denominação de Origem Protegida a isso obrigam, a que não sejam administrados alimentos produzidos fora da região.

Mesmo no caso de escassez, em anos de seca, por exemplo, a utilização desses alimentos não podem exceder os 50% da matéria seca numa base anual. “Ter estas vacas a pastar é ter a certeza de que se mantém a paisagem e a biodiversidade na região. Aqui não houve incêndios, nem são precisos sapadores. Aqui há pastores”, diz Raposo, acrescentando que na região se chamam boieiros, e que são, na grande maioria dos casos, os próprios donos das explorações. “Não conheço melhor forma de fixar a população senão o gado, que precisa de comer 365 dias por ano. Não é a mesma coisa do que plantar um amendoal, ou outro pomar ou floresta, e vir cá nas colheitas se houver alguma coisa para apanhar”, acrescenta Raposo.

Choupina e Raposo são, porém, os primeiros a admitir que a actividade não é atractiva. Em primeiro lugar, porque não faz ninguém rico. “O que conseguimos ter de margem é sempre preciso reinvestir, para comprar mais uma cerca, para substituir um tractor, para comprar mais animais”, diz Choupina. Em segundo lugar, porque não dá direito a férias nem a descanso. “Os animais comem todos os dias. Não é só deixá-los a pastar quando os lameiros estão verdejantes. No Alentejo as propriedades são grandes. Aqui as parcelas são pequenas, é preciso mudar os animais de uns sítios para os outros”, acrescenta Raposo. O que a maior parte dos produtores faz é somar outra actividade à exploração de carne. Choupina tem a castanha. Há quem também produza azeite.

António Granjo é o dono do Parador de Miranda – antiga Pousada de Santa Catarina. Diz que um dia fez as contas e percebeu que precisava de ter pelo menos 80 vacas para conseguir pagar um salário a um funcionário. É um dos maiores produtores da raça, tem três boieiros à sua conta. Estes funcionários tratam de ir vigiando os 250 animais que andam espalhados por grupos, em parcelas que, todas somadas, chegariam aos 400 hectares. “Estamos numa região de minifúndio, é difícil fazer maiores emparcelamentos. E estamos aqui numa pontinha do país, a pagar todos os custos da interioridade. Mas a ajudar a que se continue a respirar ar puro, e a fixar pessoas nesta região. Se vamos começar a falar de pegada carbónica, também podíamos pedir ao litoral que nos compense pela poluição que não fazemos”, atira o empresário.

Ao longo dos últimos anos, tem diminuído o número de produtores na região, apesar de o número de cabeças no efectivo estar mais ao menos estabilizado – são as explorações que estão a crescer. A organização de uma cooperativa agro-pecuária, onde todos os produtores entregam os animais para abate ajuda à sensação de que a carne está sempre vendida. “Antigamente a actividade era mais difícil. Porque não estávamos apenas sujeitos aos humores do clima e do São Pedro. Também era preciso conseguir vender os vitelos, arranjar compradores, ver os melhores preços”, recorda o presidente da associação.

Hoje em dia só têm de se preocupar em deixar os animais crescerem bem alimentados, que depois de inscritos para abate, recebem por quilo de carcaça “o melhor preço que é pago em toda a Europa”, garante Nuno Paulo, que está à frente da Cooperativa Agro-Pecuária, que controla todo o circuito de desmancha, embalamento e distribuição e comercialização da carne mirandesa.

Os produtores de carne mirandesa recebem 5,50 euros por quilo quando entregam um vitelo para abate e desmancha. Em 2017 venderam-se 327 toneladas. Em 2018 as contas estão por fazer, mas o número não deve ter variado muito, garante Nuno Paulo. Este responsável diz que é o esforço que aplica no circuito de comercialização que permite continuar a pagar este preço aos produtores. “Estamos praticamente fora da grande distribuição, onde a concorrência de preço é muito apertada”, admite, acrescentando que mais de metade da produção é escoada através do canal Horeca, em restauração e hotelaria. “E não vendemos em qualquer restaurante. Só naqueles que querem dar aos seus clientes um produto premium, e que estão disponíveis para pagar um preço mais elevado por um produto que tem garantia de qualidade. É dessa qualidade que não podemos prescindir”, argumenta.

O responsável pela cooperativa tem assistido aos constantes apelos à diminuição do consumo de carne, e ao aumento das dietas vegetarianas e veganas e, ao contrário dos três produtores ouvidos pelo PÚBLICO, não as desvaloriza. Choupina, Raposo e Granjo falam de “modas” - Nuno Paulo sabe que é uma tendência crescente. Isto porque anda não só pelo país como pelo mundo a vender a carne mirandesa - no dia em que nos atendeu o telefone estava em Paris, a fazer isso mesmo. “A verdade é que nos concelhos do solar ficam menos de 3% da produção, e nas grandes cadeias de distribuição não vendemos mais do que 12% [nos supermercados do El Corte Inglês, em uma ou outra loja do Continente ou Jumbo, e na retalhista Makro]”, explica. Nuno Paulo prefere acreditar que os consumidores estão cada vez mais informados, e “podem e devem” valorizar uma carne que é produzida em regime extensivo, com alimentação natural e um ritmo de crescimento lento. 

É aqui que os produtores de raças autóctones podem fazer um coro. Para além da Mirandesa há mais 14 raças, uma delas a Alentejana. O presidente da associação de produtores do gado bovino alentejano, Carpinteiro Albino, que representa 140 associados, refere que as pessoas têm cada vez mais cautela com aquilo que comem e têm muito interesse em saber o que vão consumir. “A produção de gado em regime extensivo não é prejudicial ao ambiente, pelo contrário. O que nós defendemos é que haja mais preocupações por parte do poder politico em proteger estas marcas, e que tenha cuidado com as regras de adaptação às regras da Politica Agrícola Comum (PAC). Não é a importar carne da Polónia [com a qual houve recentemente más noticias, com a venda de carne doente], ou vacas da Holanda que esse interesse é assegurado”, critica.

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