Procuradora-geral da República quer vítimas de violência doméstica ouvidas por juiz logo após queixa

A recolha de declarações para memória futura, como forma de prova a ser usada mais tarde num processo, já é possível em casos como os de abusos sexuais de menores. Seria necessário alterar a lei para que seja possível também nos casos de violência doméstica. PSD e BE mostram-se receptivos à ideia.

Foto
Nuno Ferreira Santos

A procuradora-geral da República Lucília Gago defendeu nesta quinta-feira que deve ser encarada “a possibilidade de declarações para memória futura” das vítimas no âmbito de inquéritos por crimes de violência doméstica, à semelhança do que já acontece nos inquéritos em crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual e daquilo que é feito com crianças e jovens vítimas de abusos e crimes sexuais. Para que tal seja possível, de modo a que a prova possa ser usada mais tarde num processo, é necessária uma alteração à legislação actual, sublinhou.

Este tipo de diligência decorre ainda na fase de inquérito, perante um juiz de instrução criminal e com a presença do Ministério Público (MP) e de advogado. É usada pelas autoridades para acautelar normalmente as situações em que a vítima poderá estar fora do país durante o julgamento, previsivelmente impossibilitada de prestar por outras razões o seu depoimento nessa fase ou para prevenir possíveis alterações no depoimento face a eventuais pressões de terceiros ou resultantes do tempo que passou desde que a situação ocorreu. 

Numa conferência que decorreu nesta quinta-feira na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Lucília Gago defendeu a "obrigatoriedade" dessa diligência “em momento temporal imediatamente subsequente ao da apresentação da denúncia”.

Lucília Gago defende que esta medida é importante “tendo em atenção todo um conjunto de circunstâncias – designadamente [próprias destes casos], o lapso de tempo decorrido desde a formalização das denúncias, a fragilização emocional e a ambivalência das vítimas (muito presentes neste tipo de situações), a sua dependência económica do agressor e a dificuldade em gerir com autonomia todo o quadro familiar, em particular quando existem crianças a seu cargo”.

“Mais tem que ser feito”

Na sua intervenção no painel de abertura da conferência "Violência doméstica: política criminal e perspectivas de reforma", Lucília Gago considerou que em causa está "um problema em Portugal de cultura cívica" de "discriminação negativa das mulheres face aos homens" num contexto global de aumento do número de homicídios conjugais no mundo inteiro.

A magistrada citou um estudo global da ONU sobre homicídio de mulheres de Novembro de 2018. Nele conclui-se que 87.000 foram mortas intencionalmente em 2017. Destas, mais de 50 mil foram mortas por parceiros íntimos ou membros da mesma família; e 30.000 mulheres (mais de um terço das 87 mil) foram mortas por actuais ou antigos parceiros íntimos – "alguém em quem elas normalmente deveriam confiar". São 137 mulheres mortas por esses parceiros por dia em todo o mundo, acentuou.

De uma forma geral, em vários países tem havido alterações na lei, nas políticas de prevenção e um reforço das acções de formação orientadas para esta temática, mas isso não impede "o aumento do número de casos" verificado em muitos países, referiu a procuradora-geral da República.

Tal significa que "algo mais tem que ser feito", frisou. "A uma tendência de decréscimo em 2017 seguiu-se o acréscimo em 2018" das mortes de mulheres em contexto de violência doméstica em Portugal. O "número muito expressivo de mortes" nestes primeiros meses de 2019 tornam previsível "um cenário extremamente preocupante" no fim do ano, acrescentou.

O que dizem os partidos?

O PÚBLICO tentou ouvir os partidos com assento parlamentar sobre a proposta da procuradora-geral da República que implicaria uma alteração ao Código do Processo Penal. O Bloco de Esquerda e o PSD responderam.

A deputada Sandra Cunha, do Bloco, começa por dizer que acolhe favoravelmente esta como uma medida “positiva”. “É um afinamento da lei. E embora essa declaração para memória futura já seja considerada na lei, muitas das vezes não acontece”, salienta.

A obrigatoriedade, por parte das autoridades judiciárias, de a propor às vítimas, é um exemplo de uma medida que pode ser aplicada para combater a violência doméstica e melhorar a protecção das vítimas, diz Sandra Cunha. "Estamos contentes que estejam a surgir novas medidas."

“Entre esse primeiro momento, em que finalmente a mulher arranja coragem para fazer queixa, e o depoimento perante um juiz [num eventual julgamento], podem acontecer muitas coisas – desde ameaças [por parte do agressor] aos pedidos de perdão. Há muitas coisas que fazem com que a vítima possa repensar o seu testemunho”, acrescenta. “A nossa opinião é favorável”, explica, porque se a vítima prestar declarações logo após a queixa, que possam ser usadas como prova, isso facilitará o processo.

Também o grupo parlamentar do PSD vê com bons olhos todas as iniciativas "que tenham por objectivo aperfeiçoar a lei de modo a torná-la mais eficaz e mais eficiente na prevenção e combate a todas as formas de violência, especialmente a violência doméstica".

"Por isso estamos abertos e receptivos a todas e quaisquer alterações legislativas que cumpram este desiderato. E naturalmente que esta medida proposta pela PGR como garante da prova para futuro terá a nossa disponibilidade legislativa. O Grupo Parlamentar do PSD está a preparar um conjunto de iniciativas legislativas nesta matéria, com o objectivo de tornar a lei, bem como a sua efectiva aplicação, mais eficaz e mais preventiva”, diz a deputada Sandra Pereira.

Obrigar as vítimas a depor?

Na mesma conferência promovida pelo Centro de Investigação em Direito Penal e Ciências Criminais da Faculdade de Direito, a que preside a professora Maria Fernanda Palma, o director nacional da PSP, o superintendente-chefe Luís Farinha, defendeu igualmente uma alteração da legislação, mas no sentido em que à vítima não seja permitido recusar depor em julgamento em casos de violência doméstica. “A recusa da vítima” em fazê-lo, acrescentou, “limita a produção da prova”.

Também oradores na mesma conferência em Lisboa, o procurador Rui do Carmo e a professora da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e especialista em Direito penal, Inês Ferreira Leite, discordaram de se obrigar as vítimas a depor – possibilidade também defendida noutras ocasiões por autoridades judiciárias e magistrados do MP, disse ao PÚBLICO Rui do Carmo.

"Não se pode responsabilizar a vítima pela prova”, afirmou o procurador que coordena a Equipa de Análise Retrospectiva de Homicídios em contexto de Violência Doméstica e a recém criada comissão técnica multidisciplinar para a melhoria da prevenção e combate à violência doméstica. Não se pode exigir isso da vítima, porque ela “não está em condições de suportar esse peso”, acrescentou à saída da conferência.

Rui do Carmo alertou ainda para outra situação: continuam a ser agendadas para o mesmo dia e hora as audições dos agressores e das vítimas sem ser definido um plano de segurança. O ideal, disse, é que a audição da vítima e do agressor seja efectuada em dias diferentes de forma a acautelar a protecção da primeira. No caso em que é mesmo necessário ter os dois agendados para o mesmo dia e hora deve ser feito um plano de segurança uma vez que "uma boa parte dos homicídios ocorrem nas ocasiões em que o arguido é chamado para ser ouvido".

“Especialização da PSP”

O aumento do número de participações por violência doméstica “tem levado a uma especialização” da força policial, expôs o superintendente-chefe Luís Farinha.

Só em 2018, a PSP recebeu 14.500 participações por violência doméstica; elevou os contactos periódicos com as vítimas a seu pedido para 40 mil; reforçou o patrulhamento junto às suas casas em 3400 situações; e procedeu a 7352 sinalizações para as comissões de protecção de crianças e jovens, no caso de o casal ter filhos. “O caminho da PSP tem sido o da formação e especialização”, reiterou Luís Farinha.

Apesar disso, e na sua intervenção num outro painel, a professora da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Inês Ferreira Leite, apontou várias falhas que expõem as vítimas a maiores perigos.

Depois de fazer queixa, muitas vezes, a vítima sai, sem um plano de segurança, sem um número de processo, sem saber se alguma coisa vai ser feita em relação ao agressor, referiu. Pode não acontecer sempre, mas aconteceu com uma estudante universitária que vive sozinha em Lisboa, que foi vítima de uma agressão com “sinais de extrema crueldade” pelo namorado, cuja situação a especialista descreveu para apontar o “falhanço” da avaliação do risco.

Já no final, interpelou os presentes: “A violência doméstica exige uma reflexão especial porque é um aviso.” Para as autoridades, amigos, conhecidos, vizinhos, ou outras testemunhas.

Os outros crimes são difíceis de prever, sublinhou. Mas a violência doméstica é “normalmente” um prenúncio, “uma narrativa que vai terminar” em morte. Por isso, concluiu: no caso da violência doméstica, o sistema judicial “pode salvar vidas”.

Notícia actualizada às 21h12 com reacções do BE e do PSD.

Sugerir correcção
Ler 3 comentários