O século XXI não será fascista. Será outra coisa, que desconhecemos

A História ensina-nos a não repetir erros catastróficos mas não ajuda a prever o futuro. E o abuso das analogias históricas pode obscurecer a percepção dos perigos do presente.

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Arquivo Nacional Alemão

Escreveu o filósofo George Santayana que “aqueles que não se lembram do passado estão condenados a repeti-lo”. Mas o excesso de analogias históricas pode também levar a uma percepção errada do presente, olhado como repetição do passado. É corrente a noção de que a ordem internacional se tornou mais perigosa do que durante a Guerra Fria e de que a democracia liberal está a sofrer uma contínua erosão. Todos os dias ouvimos falar de populismos, pulsões autoritárias, degradação do Estado de Direito ou agressão às minorias étnicas e imigrantes. É o que estimula a evocação do fascismo e dos “sinistros anos 1930”.

A História repete-se? É o nó do problema. Estão de volta os “velhos demónios” da Europa? Ou enfrentamos “demónios novos”? Perante a multiplicação de profecias sobre os fascismos, responde Nicolas Lebourg, historiador das extremas-direitas: ninguém nos garante que, “se virmos vacilar as nossas as nossas democracias, iremos forçosamente para um regime de tipo fascista”. Há outras variantes de autoritarismo. A era da globalização e do islamismo, da Internet e das redes sociais ou da revolução da inteligência artificial pode produzir pesadelos ou novos “admiráveis mundos novos”. Mas não serão os de há oitenta ou cem anos.

Nos últimos tempos, a nossa imaginação foi inundada pela memória dos anos 20-30. É uma tendência visível desde a crise económica de 2008, tal como o foi nas comemorações do centenário da Grande Guerra, sob o signo do medo de uma “repetição de 1914’”. Os alarmes soaram primeiro na Europa e depois nos Estados Unidos, com a eleição de Trump, o que levou alguns analistas americanos a falar em “pré-fascismo”. Há o sentimento de que “tudo se desmorona”.

Emmanuel Macron ilustrou, num discurso de Outubro, este fantasma. “Numa Europa dividida pelos seus medos, [com] o retrocesso nacionalista e as consequências da crise económica, vemos articular-se, quase metodicamente, tudo o que marcou a vida da Europa do pós-I Guerra Mundial até à crise de 1929. 

História

Para que serve a História? Timothy Snyder, historiador dos anos 30, acaba de publicar mais um estudo sobre os riscos do presente – The Road to Unfreedom – Russia, Europe, America (O Caminho da Não Liberdade). Escreve: “Os americanos de hoje não são mais inteligentes do que os europeus que viram a democracia ceder ao fascismo, ao nazismo ou ao comunismo. A nossa vantagem é que podemos aprender com a sua experiência.”

A História não serve para prever o futuro. Ensina a não repetir erros catastróficos, como os dos governantes de 1914 ou de 1929. A memória de 1929 está na base das respostas dadas à crise económica de 2008. O euro resistiu, a UE não implodiu, a América não faliu e a economia mundial não desabou.

Jonathan Freedman, jornalista do The Guardian, não crê na possibilidade de repetição dos anos 30 mas adverte: “Para os historiadores do período, os anos 30 são dignos de estudo porque a década prova que os sistemas – incluindo as repúblicas democráticas – que pareciam mais sólidos e robustos entraram em colapso. Este destino é possível, mesmo nas mais avançadas e sofisticadas sociedades. O aviso permanece actual.”

Mas as analogias podem também cegar, tornando-nos incapazes de distinguir os traços originais do presente. Não esqueçamos que os políticos e generais de 1914 raciocinavam em termos de falsas analogias históricas - os conflitos e guerras do século XIX.

5 de Março, uma efeméride

No dia 5 de Março de 1933, o Partido Nacional Socialista (NSDAP), de Hitler, venceu as eleições com 43,7 % dos votos. O facto merece um comentário. Hitler não chegou ao poder através do voto. Já lá estava, como chanceler, desde 30 de Janeiro, por opção do decrépito Presidente, marechal Hindenburg (1847-1934). Foi colocado no poder por uma manobra de figuras da “corte presidencial”, que consideravam poder manter Hitler “sob controlo”: um dos mais monstruosos “erros de percepção” da História. Walter Funk, chefe do gabinete de imprensa de Hitler, disse à imprensa britânica: “Meus senhores, não se trata simplesmente de uma mudança de Governo, mas de uma mudança de regime.”

Na noite de 28 de Fevereiro há o incêndio do Reichstag. Hitler suprime as liberdades constitucionais. As eleições decorrem num clima de terror e histeria, com jornais encerrados ou censurados, violência de rua e dezenas de mortos. Que se segue? A prisão de 92 deputados comunistas e socialistas. No dia 22 é aberto o primeiro campo de concentração, em Dachau. A 1 de Abril, os nazis lançam o boicote às lojas de judeus, que são depurados da função pública, na primeira consagração legal do anti-semitismo. São criados tribunais de excepção e dissolvidos os sindicatos. No dia 11 de Maio são queimados 25 mil livros em frente da Universidade de Berlim. A 14 de Julho, o NSDAP torna-se no partido único. Sabemos o que se seguiu.

1933 foi uma vertigem. Será que provocou uma comoção universal? As vozes de condenação foram minoritárias. Era o “espírito do tempo”. Hitler governou pelo terror, mas não apenas pelo terror: fascinou os alemães. Não teria chegado ao poder sem um apoio de massas. “Hitler foi acusado de ter perdido a guerra, não de a ter começado”, resumiu o historiador alemão Peter Fritzsche.

Para o sociólogo alemão Norbert Elias (1897-1990), o nazismo significou um “processo de des-civilização”. Por isso escreveu que explicar o passado significa “impedi-lo de se reproduzir”.

Nos anos 1920-30 a democracia tornara-se uma ideia aberrante para grande parte das elites e das massas. Predominaram as revoluções abruptas. Hoje, nas “democracias iliberais”, a democracia é demolida lentamente usando as instituições democráticas. Começa nas urnas e acaba na montagem de regimes autoritários que fazem questão em usar vestes democráticas. É uma diferença crucial.

A “brutalização” dos europeus

O nazismo é o supremo aviso de que a barbárie é sempre possível e de que “nunca nada está garantido”. Mas é uma analogia inútil, porque não autoriza comparações.

O historiador Ernest May e o politólogo Richard Neustadt, a pensar na América, publicaram em 1986 um livro sobre o uso da História pelos políticos - Thinking in Time: The Uses of History for Decision-Makers (Pensar no Tempo –  Os usos da História pelos decisores). Um decisor político não deve confiar na sua analogia favorita e, ainda menos, na que lhe convém. Um fabuloso exemplo viria anos depois, quando os neoconservadores americanos recorreram ao precedente da Alemanha no fim da II Guerra Mundial para democratizar o Iraque, começando por dissolver o exército de Saddam.

May e Neustadt recomendam uma rigorosa identificação das diferenças: Quais são as semelhanças com a presente situação? Quais são as diferenças? Quais são as implicações destas semelhanças e diferenças? Se compararmos os anos 20-30 com a nossa época, descobrimos uma diferença abissal.

Qual é a matriz daqueles anos terríveis? “Se não podemos conceber o século XIX sem a Revolução Francesa, não podemos pensar as tragédias do século XX sem a Grande Guerra”, afirmou o historiador francês François Furet. Foi uma “guerra civil europeia”, antes de ser mundial, “em que milhões de homens foram lançados numa guerra total e arrancados às suas solidariedades tradicionais, encontrando-se numa posição de absoluta subordinação ao Estado e ao interesse nacional. Numerosas camadas da população aprenderam a política através da guerra. Foi a entrada patológica [da Europa] na democracia”. O historiador americano George Mosse criou o conceito de “brutalização”. A Grande Guerra envolveu um grau de violência até então inimaginável, uma “brutalização” das sociedades, culminando numa perda dos valores — e o da vida em primeiro lugar. A violência de massa banalizou-se e, sem ela, é impossível perceber as décadas do pós-guerra.

As sociedades actuais, e não só europeias, foram edificadas sobre as ruínas dos anos 20-30 e contra eles, com sete décadas de paz, numa relativa prosperidade, na consolidação da democracia e do Estado de Direito. Foi também o tempo em que acabaram os impérios. Há um abismo entre as duas épocas.

A percepção do presente

Como pensar o presente? Focarmo-nos no populismo, na ascensão da China, em Trump, na revolução das comunicações e na inteligência artificial? O Dr. Kissinger deixou de se interessar pelo caos mundial e concentrou-se no estudo da inteligência artificial, que muito o preocupa. “Filosófica e intelectualmente, a sociedade humana não está preparada para a ascensão da inteligência artificial”, escreveu em Junho passado na revista The Atlantic. Teme que “o conhecimento humano perca o seu carácter pessoal e que os indivíduos se transformem em data e que os data passem a reinar.”

As pessoas comuns com memória dos anos 30 talvez se preocupem mais com a ordem internacional e com a rapidez com que as coisas podem degenerar durante uma crise inesperada. As elites europeias e, agora, as americanas pensam nos nacionalismos, nos populismos e na degradação da democracia. Mas estes sinais já não remetem para o passado. O Movimento 5 Estrelas ou o Gilets Jaunes, que contestam a democracia representativa e começam a ser um modelo, a que época pertencem? Orbán não é o almirante Horthy (1868 –1957), o ditador húngaro de entre as duas guerras, nem Salvini é Mussolini. E com quem comparar Trump?

A árvore populista tem muitos ramos e genealogias. É de evitar as falsas percepções políticas. “Não se reforça o combate ideológico contra os populismos identitários assimilando-os ao fascismo, bem pelo contrário”, avisa o politólogo francês Jean-Yves Camus, que os estuda. “Porque estes populismos pertencem à sua época, a da sociedade globalizada e pós-moderna, da democracia digital, de cujos códigos se apropriaram.” Saberão as elites democráticas responder aos novos desafios históricos?

Citei acima Nicolas Lebourg sobre a improbabilidade de um novo fascismo. Que horizontes apontam os populismos? “Mais provavelmente um regime autoritário e demagógico, que prometerá a defesa das conquistas sociais e desacreditará a política, pervertida pelos partidos políticos clássicos.” Há vários modelos disponíveis. Mas, ao contrário dos anos 1920-30, não há violência organizada, nem as grandes ideologias que prometiam uma sociedade nova, de raça ou de classe, nem o mito do “homem novo”.

A partir daqui entramos em terra incógnita. Temos a memória do passado, que nos defende, mas estes fenómenos são já o começo do século XXI, o presente, cujas novidades mal conhecemos. Apenas sabemos que será perigoso.

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