Fake news: sempre existiram, mas nunca foram tão daninhas

A manipulação das massas para alterar o curso da história e decidir quem chega ao poder já gerou “episódios bem mais negros” na história da humanidade, dizem um politólogo, um filósofo, um psiquiatra e um investigador aos quais o PÚBLICO perguntou, entre outras coisas, como é que tanta gente letrada, instruída, se deixa manipular por algoritmos.

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Jair Bolsonaro, Donald Trump e Matteo Salvini Reuters/EPA

Nunca como hoje as pessoas foram tão maciçamente manipuladas por uma indústria que fabrica fake news com o intuito de fazer chegar os populistas aos lugares de poder. O que aconteceu para que as sociedades, escolarizadas como nunca antes, se verguem a algoritmos que lhes dizem o que pensar e que direccionam o seu voto para figuras como Donald Trump, nos Estados Unidos, ou Jair Bolsonaro, no Brasil? Não foi à toa que Matteo Salvini, já com as eleições italianas ganhas, disparou a frase: “Obrigado a Deus pela Internet, obrigado a Deus pelas redes sociais, obrigado a Deus pelo Facebook”. Com as redes sociais a atraírem o populismo político e social como “água estagnada os mosquitos” – a metáfora é de Pacheco Pereira, em crónica recente nas páginas deste jornal - devíamos estar todos preocupados com a manutenção das democracias e da ordem mundial? Ou este diagnóstico encerra também ele um erro de percepção?

“Esta manipulação sempre existiu. E até já tivemos momentos muito mais negros desse ponto de vista”, relativiza o politólogo Pedro Adão e Silva, para quem “não faltam exemplos históricos de fake news com consequências brutais”. “A perseguição aos judeus assentou num conjunto de fake news que assentavam em pequenas notícias que diziam que eles iam controlar o mundo. E isso até aconteceu numa altura, logo no princípio do século XX, em que os judeus já tinham menos poder. A percepção sobrepôs-se à realidade.

E o que foi o caso Dreyfus se não fake news?”, concretiza o politólogo, referindo-se ao “Protocolo dos Sábios de Sião”, um texto anti-semita de finais do século XIX que descreve uma conspiração dos judeus para dominarem o mundo que nunca existiu, mas que ajudou a alcandorar Adolf Hitler ao lugar de poder, por um lado, e, por outro, à condenação por alta-traição do oficial de artilharia do exército francês Alfred Dreyfus, na França de 1894. O processo viria a revelar-se baseado numa carta falsamente atribuída ao judeu e desestabilizaria a França durante muitos anos.

“Muito do que está a acontecer é estruturalmente antigo, isto é, quem tem poder político, económico, financeiro e até moral, sempre procurou controlar a informação. É algo quase imutável na forma como nos organizamos socialmente”, corrobora o vice-director do centro de Estudos de Comunicação e Sociedade da Universidade do Minho (UM), Luís António Santos. Outro exemplo: na Roma de 1522, o escritor Pietro Aretino procurou manipular a eleição do Papa que sucederia a Leão X, caluniando os adversários dos Médici com notícias falsas que colava numa folha sob a estátua de Pasquino, para que todos as pudessem ler. Deriva, aliás, daí, o termo “pasquim” para designar publicações pouco rigorosas em relação à verdade.

O que é novo são os mecanismos de propagação e o rotundo colapso da ilusão que acompanhou o aparecimento das redes sociais. “Houve essa ilusão de que estávamos de facto a caminhar para a concretização daquela utopia comunicativa de que falava [o filósofo alemão Jürgen] Habermas, em que haveria um espaço de debate deliberativo em que todas as pessoas participavam de forma racional e que essa participação culminaria num resultado que era fruto da razão”.

Era a utopia, no fundo, a que apelava Mark Zuckerberg, quando lançou o Facebook, proclamando estar a inaugurar a possibilidade de todos serem ouvidos a uma escala surpreendente: “Estas vozes vão crescer em número e em volume. Não vão poder ser ignoradas”. Pensou-se na “Primavera Árabe” como prenúncio desse admirável mundo novo. Decorridos anos, o efeito disto, porém, surge enviesadíssimo. Mesmo que arrumemos como redutora a declaração do escritor Javier Marias, para quem a Internet mais não fez do que “organizar a imbecilidade pela primeira vez”, resulta iniludível o choque com uma realidade em que, como retoma Pedro Adão e Silva, “as redes sociais mantiveram vivos os mecanismos do passado, de propagação de ilusões e de recuo da razão e da racionalidade”.

A ignorância fundamental

Voltemos a Pacheco Pereira que, depois de se ter passeado pelo Facebook, encontrou bullying, tribalização, radicalização, cobardia anónima, ajustes de contas. Em tom sempre “excitado, assertivo e taxativo”. É o pior da natureza humana, mas a assumir formas socialmente agressivas. O populismo, a chamada pós-verdade, a indiferença sobre a verificação das fake news – e passemos à frente da ironia que é estarmos a cunhar esta desordem informativa, como lhe chamou a académica Claire Wardall, com uma expressão popularizada por Donald Trump, referindo-se a notícias que, sendo verdadeiras, o questionavam e à campanha que venceria com uma ajudinha da Rússia e da Cambridge Analytica que – sabe-se agora – pagaram milhares de anúncios no Facebook para alterar as percepções face aos candidatos e influenciar o comportamento eleitoral de milhões de americanos.

Mas a implacabilidade desta transformação das redes sociais em armas de intervenção política radica mais fundo na natureza humana, segundo o filósofo José Gil. “Há uma subjectividade fundamental na percepção do mundo humano, ou, se se quiser, uma ignorância fundamental que acompanha toda a percepção do outros”.As fake news alimentam-se dessa subjectividade do olhar humano sobre o mundo. “Porque é que tanta gente instruída, culta, achou que Bolsonaro era a solução para o Brasil?”, prossegue Gil, reforçando esta tese de que a manipulação que faz passar por notícia aquilo que é boato transformado em arma se alimenta dessa subjectividade inerente à condição humana.

É isto e não é só isto. É mais complexo. Porque esta manipulação surge condimentada por “excertos de afectividade”. “Os nossos juízos de realidade estão deformados por juízos de valor influenciados pelo afecto, pelas emoções”. Aqui cabem o ódio, o ressentimento. “Não há juízos objectivos”. É esta a lição que convém, portanto, não esquecer quando se procura perceber como é que as tais pessoas cultas, instruídas, escolarizadas, consentem que seja um algoritmo a ditar-lhes o que pensar. “Os seres humanos não funcionam com a razão ou com a emoção, mas com uma coisa articulada, com uma 'bilógica'”, introduz, por seu turno, o psicanalista Coimbra de Matos.

 A verdade a preto e branco

Tudo somado, volta a filosofar José Gil, a novidade está em que “temos uma margem de variação das opiniões sobre as coisas como nunca houve”. E que ameaça o conceito de verdade. “As fake news aproveitam essa margem em que não se pode já definir o que é a realidade, o que é verdade do que não é. E isto é que é novo”. Continua José Gil: “Havia uma série de crenças que não se discutiam: Deus existia, a família era a melhor coisa. Esse terreno sólido, onde se apoiavam as opiniões, desmoronou-se com a globalização da comunicação”. Como num terramoto, ficou tudo virado do avesso. Foi de tal modo, esta destruição do espaço público e a sua consequente substituição pelas redes sociais que são também o espaço das fake news, que a própria realidade se tornou imagem, uma representação de si mesma. Posto em termos prosaicos, por José Gil, “já não sabemos o que é uma chávena de chá”. Ou, se quisermos, será qualquer coisa como estar diante do quadro de Magritte Isto não é um cachimbo, em que o artista quis diferenciar o objecto da sua representação, e fôssemos já incapazes de descortinar o sentido da mensagem. Estamos dentro ou fora do quadro?

Temos então a discussão publica desterritorializada. E temos mais: temos o ressentimento dos eleitores que deixaram de se sentir representados pelas instituições que supunham representá-los. E um processo de manipulação da verdade que se enreda “na lógica da pescadinha de rabo-na-boca”, como diz Luís António Santos. “O discurso populista, regenerador (o que diz que o Estado não presta, que os políticos são todos iguais), que é activamente construído para atingir um fim político, não teria adesão se não houvesse na vida de cada um sinais de que pelo menos algumas destas coisas são verdade”, enfatiza o investigador.

“No caso português”, transpõe Pedro Adão e Silva, "todos os indicadores revelam melhorias nas condições materiais de vida das pessoas”. Logo, o “sentimento de abandono” que grassa entre portugueses deriva, sobretudo e em boa parte, das expectativas geradas. “As pessoas têm uma expectativa que não é correspondida e isso cria uma espécie de clivagem entre um ‘nós’ e um ‘eles’. E a ideia de que a soberania reside no ‘nós, o povo’ deixou de estar presente e foi substituída pela ideia de que é preciso fazer alguma coisa para que ‘nós, o povo, voltemos a controlar os nossos destinos’”, explica.

Estas percepções ganharam e perderam a um tempo com a penetração das tecnologias da comunicação no espaço público. “Há muito mais gente informada daquilo a que se chama corrupção”, lembra José Gil, cuja conclusão sobre os resultados deste fenómeno é mista: “A maneira como se abafava tudo o que dizia respeito à corrupção, que vivia na impunidade muito mais do que agora, fazia com que as pessoas tivessem uma percepção errada: julgando que não havia corrupção ou sentindo que havia mas não sabiam onde. Agora, as pessoas ganharam uma muito maior consciência da injustiça social, mas, ao mesmo tempo, fazem-se juízos generalizados, dizendo que todos os políticos são corruptos”.

Mais do que por causa do que está a acontecer, a estupefacção de Luís António Santos deriva da estupefacção que as instituições nacionais e supranacionais demonstram perante o que está a acontecer. E e não é só Trump nem Bolsonaro nem Matteo Salvini, recordemo-nos que na Hungria e na Turquia várias empresas foram fechadas pelos respectivos governos, em nome da “defesa da verdade”. “A União Europeia deixou que impérios como a Google e o Facebook se estabelecessem na Europa, de forma desregulada e pagando pouquíssimos impostos”, acusa Luís António Santos, para quem as novíssimas preocupações com estes mecanismos de "destruição em massa" não teriam adquirido o carácter de urgência que a União Europeia lhes atribui, não se desse o caso de as instituições tradicionais estarem a sentir o poder escapar-lhes das mãos. 

Num relatório do Conselho da Europa, abundam quase meia centena de recomendações dirigidas a estruturas nacionais e supranacionais. De Bruxelas, com os dirigentes europeus assumidamente assustados com as ameaças aos sistemas democráticos da União Europeia, têm emanado planos de acção para combater a desinformação, propostas de sistemas de alerta rápido, códigos de conduta, programas de promoção da literacia mediática. Google, Facebook e Twitter também se têm desdobrado em actos de contrição e promessas auto-regulatórias para reerguer balizas nesta realidade a que poderíamos chamar líquida ou gasosa, se nos quisermos aproximar do léxico de Noam Chomsky, o celebérrimo pensador que passou décadas a desnudar as estratégias de manipulação da opinião pública.

Estamos a falar sempre de um policiamento analógico para aquilo que se transformou num verdadeiro faroeste digital. “Basta pensarmos na quantidade de documentos divulgados nos últimos escândalos – os Panama Papers, por exemplo – e na dificuldade, mesmo das grandes empresas jornalísticas, em lidar com tal quantidade de informação que depois é direccionada de forma estratégica para audiências muito específicas”, sustenta Luís António Santos. Mas, apesar do que disse Hegel, aqui convocado por Pedro Adão e Silva por causa daquela ideia de que estamos condenados a repetir os erros do passado, “há mecanismos que contrabalançam estas tendências”. Pode-se começar, por exemplo, por “recuperar o papel dos media, dos intelectuais, dos sindicatos, dos partidos, dos Parlamentos, enquanto mecanismos de intermediação entre a percepção das pessoas e a realidade dos factos”.

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