Fundadores, dirigentes, dissidentes. Duas visões de um partido que entusiasmou e desiludiu

Daniel Oliveira e Miguel Vale de Almeida analisam os últimos 20 anos e o presente do partido que ajudaram a fundar e que abandonaram por divergências ideológicas com as direcções do BE.

Fotogaleria
rui gaudencio
Fotogaleria
Daniel Oliveira Daniel Rocha
Fotogaleria
Miguel Vale de Almeida CMM

Ambos foram fundadores do BE. Ambos vieram da Política XXI – movimento que esteve na base do nascimento do partido juntamente com o PSR e a UDP. Ambos foram figuras marcantes, mas ambos saíram do partido por discordarem de algumas orientações ideológicas levadas a cabo pelas direcções. Deixaram o Bloco com críticas, sem optar por uma atitude persecutória em relação ao partido e a quem lá ficou.

Daniel Oliveira, jornalista, e Miguel Vale de Almeida, antropólogo, analisam os 20 anos de actividade política do BE e o momento presente do partido. Um “fenómeno de modernização da esquerda, muito bem-sucedido e muito bem-vindo” e que “transportou a extrema-esquerda para uma nova realidade política, vencendo a sua tradicional balcanização”. Mas também deixam críticas e alertas.

Daniel e Miguel não foram os únicos bloquistas a deixar o partido nas primeiras duas décadas. A cisão mais recente envolveu 26 militantes, entre eles alguns fundadores, como João Carlos Louçã e Sérgio Vitorino. “Resolvemos deixar o Bloco porque não podemos ignorar o caminho de institucionalização dos últimos anos que transformou o partido, de instrumento de luta política, num fim em si mesmo”, escreveram.

Com Gil Garcia, em Dezembro de 2011, saiu a tendência Ruptura/FER, com o objectivo de fundar um partido, o MAS (Movimento Alternativa Socialista). Também as deputadas Joana Amaral Dias e Ana Drago deixaram o partido. Em 2014, um ano antes da "geringonça" e no momento da saída, Ana Drago explicava que os membros da Associação Fórum Manifesto concluíram que dentro do Bloco de Esquerda já não era possível fazer "um processo de criação de alianças e de convergências". 

Sectarismo interno e externo

Daniel Oliveira saiu do BE em 2013. No início de uma carta de cinco páginas que deixou à direcção resumia as razões para a sua saída: “O sectarismo interno, que enfraqueceu o partido e o seu debate democrático, e o sectarismo externo, que tem impedido o Bloco de ser, como sempre quis ser, um factor de convergência e reconfiguração da esquerda portuguesa.” Não aderiu a qualquer outra força política e passou militar apenas no jornalismo e no comentário político.

Quando olha para os 20 anos de actividade política do BE, Oliveira, que entretanto fundou o Movimento 3D e chegou a colaborar com o Livre/Tempo de Avançar (tal como Ana Drago) divide-os em dois momentos.

Momento um: Os primeiros anos. Uma fase em que, recorda, o Bloco conseguiu quatro vitórias. “Romper o domínio de quatro partidos fundadores da democracia, que apenas tinha sido esporadicamente abalado pelo PRD; transportar a extrema-esquerda para uma nova realidade política, vencendo a sua tradicional balcanização; tornar a fronteira do PS mais porosa, obrigando a preocupar-se pela primeira vez com o seu eleitorado mais à esquerda; e dar à igualdade e à agenda dos chamados 'costumes' a centralidade política que já tinha em grande parte dos países europeus.”

Foto
Fotografia de família dos candidatos a deputados nas primárias do partido Livre / Tempo de Avançar Daniel Oliveira

O BE, acrescenta, “veio ocupar um espaço político-cultural, entre a ortodoxia do PCP e o centrismo ultra-pragmático do PS, que já existia e não tinha representação partidária”.

 Romper o nicho urbano

Segundo momento: Os anos seguintes à sua fundação. Uma altura em que o partido, “ao contrário do que previam muitos observadores demasiado agarrados ao passado das organizações fundadoras do Bloco”, conseguiu “romper o nicho eleitoral urbano e jovem, que as chamadas causas ‘fracturantes’ lhe garantiram no início, e disputar uma agenda política mais abrangente e tradicional”.

Este facto, acentua Daniel Oliveira, permitiu que o BE “se transformasse num partido nacional, transversal a vários grupos sociais e etários e determinante no xadrez político”. Ganhou também “capacidade de representar, à esquerda do PS, aquilo a que se costumam chamar os ‘sectores mais dinâmicos da sociedade’ – coisa que o PCP já não conseguia fazer”. “Hoje, “é absolutamente determinante para o comportamento do PS e, dessa forma, para o conjunto da esquerda e da política nacional.

Mas ainda nesta fase há um “no entanto”. “O crescimento e maturidade do Bloco não foi acompanhado por grandes mudanças internas. As correntes iniciais, sem qualquer relevância social ou implantação social, continuam a determinar grande parte das escolhas do partido.”

E para Oliveira, “são, mais do que correntes ideológicas, instrumentos de captação e selecção dos quadros políticos”. E são também, “em defesa da manutenção do status quo interno, um factor de resistência ao crescimento da militância”.

“A enorme discrepância entre a composição interna do partido e o seu eleitorado continua a ser o maior problema do BE, que tem levado a muitos equívocos e erros. Já o era há 15 anos, agora ainda o será mais”, acentua o jornalista. 

“Falta experiência de poder”

E chegamos ao BE de hoje. À era da chamada “geringonça”, em que, segundo Oliveira, o apoio do partido à dita cuja “resultou mais da pressão do seu eleitorado (muito menos hostil ao PS do que o do PCP) do que da sua cultura interna”.

Foto
Daniel Oliveira entrevista Rui Rio para o seu podcast

O apoio correspondeu também a “um gesto de sobrevivência, que nem estava inscrito nas grandes escolhas que o partido tinha feito no último congresso antes das eleições”. A enorme capacidade de adaptação do Bloco, que para Daniel Oliveira é o principal segredo para o seu crescimento, permitiu-lhe vestir esta sua nova pele com mais facilidade do que o PCP. “Esta experiência acabou por ser bastante importante para uma nova cultura de proposta política do partido”, diz ainda.

 Ainda assim, para Oliveira “falta ao Bloco experiência de poder”. O comentador político lembra que as duas únicas experiências executivas foram na Câmara de Lisboa, com José Sá Fernandes e Ricardo Robles, “e correram mal”. “Sem qualquer outra experiência autárquica (Salvaterra não conta, pois o partido foi, na prática, uma barriga de aluguer) e governativa, este é o salto que o BE não deu.”

“É mais um elemento que atrasa o seu amadurecimento político e a sua capacidade prepositiva. Quando o der, viverá novas dificuldades, semelhantes ao episódio de Ricardo Robles. Isso vai obrigá-lo a mudar a sua política de recrutamento de quadros e a construir uma linha programática mais consistente”, alerta.

Olhando ainda para o BE hoje, Daniel Oliveira acha “que continua a ser, até por causa da sua origem de contrapoder e de dispersão ideológica, um partido de causas e reivindicações”. O cenário político da próxima legislatura, conclui, acabará por determinar o que será no futuro. “Ficar no lugar onde está pode vir a ser fatal, assumir mais responsabilidades, com a sua actual estrutura, também. É previsível que o PS continue a estar limitado pelo Bloco, como nunca esteve pelo PCP, que só marginalmente lhe disputa eleitorado. E isso continuará a dar ao partido um papel insubstituível na vida política portuguesa.”

Foto
Em 1999, na apresentação dos diplomas do Bloco sobre reconhecimento de direitos dos casis do mesmo sexo Miguel Vale de Almeida

“Social-democracia radical”

Miguel Vale de Almeida deixou do BE em 2009, “mais de um ano antes de ter sido convidado” para concorrer como independente nas listas PS às legislativas. Acabou por renunciar ao cargo de deputado pelos socialistas por sentir que tinha cumprido o seu dever e voltou à sua actividade de professor universitário.

Sobre a saída do Bloco diz hoje que à época sentiu que “o projecto da Política XXI - talvez o projecto político mais interessante, nos conteúdos, que já tivemos - tinha sido devorado no BE por posições mais marcadas do ponto de vista ideológico, devido à preponderância dos sectores vindos do PSR e da UDP”.

Acrescenta ainda que deixou o partido também – “e talvez sobretudo” - porque apesar de se envolver em causas e movimentos, “a forma-partido” é-lhe “muito desconfortável. “Talvez por causa do pensamento crítico a que a minha profissão de antropólogo me habituou. E isto não é necessariamente auto-elogio, pois admiro quem consegue baixar a guarda em nome de projectos políticos abrangentes.”

Fala com entusiasmo da fundação e dos primeiros anos do BE. Diz mesmo que foi “um fenómeno de modernização da esquerda, muito bem-sucedido e muito bem-vindo”. Um partido que “criou uma outra sensibilidade entre a tradição republicana do PS e a tradição comunista do PCP”. “Na realidade criou o que mais se aproxima de formas de ‘social-democracia radical’ - uma classificação que é para mim positiva mas na qual creio que o BE não se reconheceria.”

Hoje, acha que o Bloco “estará numa fase complexa, mas muito enriquecedora, de negociação com ‘o sistema’, pelo facto de sustentar o governo PS”. “O risco que corre é já antigo, no entanto: tornar-se em partido parlamentar mas sem penetração social, nomeadamente sindical”, acrescenta.

Para Miguel Vale de Almeida, o BE “tem muito mais influência em alguns movimentos sociais e activismos do que o PS, tem muito menos influência do que o PCP no movimento sindical”. E isso “faz com que seja muito urbano e muito dependente do voto de classes médias, e do voto em si”. “Curiosamente é entre estes segmentos que uma visão social-democrata radical tem, de facto, possibilidade de apoio”, conclui.

Sugerir correcção
Comentar