"Brexit": quem calçou a bota que a descalce

O que torna o "Brexit" difícil é o facto de o governo do Reino Unido não ter uma ideia coerente sobre o que deseja das negociações com a UE ou realista em relação àquilo que é possível obter.

Durante muitos anos a União Europeia não tinha nos seus tratados um artigo de saída, levando a especulações entre os teóricos da integração europeia sobre se seria possível a um estado-membro “desintegrar-se” da UE. Provando que nem tudo é mau no Tratado de Lisboa, essa possibilidade foi incluída com o famoso artigo 50 que o Reino Unido usou pela primeira vez há quase dois anos, a 29 de março de 2017.

Caminhe para onde caminhar a União Europeia, tenho para mim que duas coisas devem ser claras em relação aos Estados-membros que a compõem: só deve fazer parte da União Europeia quem quiser, e quem não quiser deve poder sair. Só isto provará que a UE não é nem deve ser um superestado e — pensemos o que pensarmos sobre o federalismo — demonstrará uma distinção clara em relação a federações como a Rússia ou os EUA, nas quais não só boa parte do território foi adquirido à força através de anexações como também o direito de secessão não é reconhecido.

Aquilo que torna neste momento difícil o "Brexit" não é o artigo 50, cujo prazo termina como se sabe no próximo dia 29 de março e só pode ser prolongado por unanimidade. Outras possibilidades teóricas de saída, como a utilização da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, dariam menos tempo ao Reino Unido para se preparar e acima de tudo nenhumas garantias sobre o que esperar da saída desordenada que então se verificaria.

O que torna o "Brexit" difícil é o facto de o governo do Reino Unido não ter uma ideia coerente sobre o que deseja das negociações com a União Europeia ou realista em relação àquilo que é possível obter. Não se pode querer sair do mercado único mantendo o mesmo acesso ao mercado único sem querer um alinhamento com as regras do mercado único ou, caso se recuse esse alinhamento, sem ter de verificar os bens e mercadorias na fronteira. Muito menos se pode pretender que a União Europeia abandone na mesa das negociações um estado-membro como a Irlanda para adotar as posições de um futuro estado terceiro como o Reino Unido.

Alguns daqueles que têm acusado a União Europeia de ser demasiado inflexível na defesa da posição irlandesa seriam os primeiros a acusar a UE de prejudicar um país pequeno como a Irlanda a favor de um mercado grande como o do Reino Unido, caso essa posição fosse diferente.

Concordo com aqueles que dizem que a saída da União Europeia tem de ser possível não só na teoria, mas também na prática. Mas isso não pode significar que tenhamos de inventar um "Brexit" vantajoso onde ele na realidade não existe só para satisfazer as vaidades daqueles que inventaram ilusões sobre o "Brexit" aos eleitores britânicos. Foram os defensores da saída da União Europeia — não só no Reino Unido, mas também aqueles agora muito silenciosos sobre o tema em Portugal — que inventaram a ideia de que o "Brexit" "não tinha desvantagens nenhumas mas apenas vantagens consideráveis”, como então disse David Davis, o ministro do "Brexit" que acabou por se demitir.

É aos defensores do "Brexit" que agora compete materializar essa suposta realidade, se forem capazes. Não podem é endossar a missão àqueles que sempre explicaram por A+B as desvantagens da saída — afinal, não deve ser por acaso que todas as economias e sociedades desenvolvidas da Europa ocidental, incluindo a Noruega e a Suíça, pertencem de jure ou de facto ao Espaço Económico Europeu, que se baseia no direito da UE — e que vêem a realidade confirmar todos os argumentos que sempre usaram.

Theresa May anunciou na terça-feira a possibilidade de um adiamento para o "Brexit", que será votado caso os deputados britânicos rejeitem uma saída sem acordo, que por sua vez será votada caso os deputados voltem a rejeitar o acordo de saída de Theresa May que já chumbaram uma vez por mais de 230 votos. Entretanto o Partido Trabalhista propõe uma saída à norueguesa, mantendo o Reino Unido como estado satélite da UE, ou então um referendo caso a sua hipótese de acordo seja rejeitada. Parece não haver no parlamento britânico maioria para nenhuma das opções a não ser o adiamento, mas o adiamento não nos diz nada sobre o que acontece depois — daqui a três meses o governo britânico continuará a não saber o que quer ou a querer aquilo que não existe.

Que fazer, então? Do lado da UE, apenas três coisas: a) tentar garantir ao máximo que os direitos dos cidadãos não sejam afetados, b) facilitar a saída do Reino Unido da UE enquanto essa for a última vontade expressa dos britânicos, e c) não prejudicar indevidamente qualquer estado-membro de entre os que permanecem na União, ou a própria União, para satisfazer o estado-membro que sai. De resto, o "Brexit" é um problema britânico, e é adequado que assim continue a ser: quem calçou a bota que a descalce.

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