Um conflito insolúvel entre potências nucleares

A muçulmana Caxemira foi dividida após a guerra indo-paquistanesa que se seguiu à independência, em 1947. É, desde então, uma região explosiva.

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O raide aéreo indiano em território paquistanês não suscita alarme por opor potências nucleares. Relevante é que, pela primeira vez, a aviação indiana tenha desencadeado um ataque não na área fronteiriça, onde há frequente “incidentes”, mas no interior do Paquistão. Se a dissuasão nuclear não foi posta em causa, não se exclui um risco de escalada. Observam analistas que Nova Deli avisa Islamabad que o estatuto nuclear não garante a impunidade perante agressões indirectas, como actos terroristas que o Paquistão não previne nem reprime.

Há dois outros elementos a ter em conta. O conflito na Caxemira pode estar a radicalizar-se. E a Índia está a dois meses das eleições legislativas, o que não favorece a diplomacia mas as paixões nacionalistas.

O conflito já provocou um mínimo de 70 mil mortos desde os anos 1980. Para lá das guerras, há o terrorismo e a repressão, as 166 vítimas dos atentados de Bombaim, em 2008, ou os 145 civis massacrados numa manifestação em Caxemira, em 2016.

A muçulmana Caxemira foi dividida após a guerra indo-paquistanesa que se seguiu à independência, em 1947. É, desde então, uma região explosiva. A Índia sempre recusou cumprir a promessa de realizar um referendo, o que serviu de pretexto à segunda guerra indo paquistanesa, em 1965. Já a terceira guerra, em 1971, está ligada à secessão do Paquistão Oriental, que deu lugar ao Bangladesh. Depois dos dois países terem ascendido ao estatuto de potências nucleares, em 1998, as crises militares, como em 1999 e 2002, foram resolvidas sem guerra.

A “questão de Caxemira” cedo deixou de ser um problema territorial, para se transformar numa questão de identidade nacional nos dois países. O Paquistão nunca desistiu de reagrupar os muçulmanos da Índia britânica. A reconquista de toda a Caxemira é uma reivindicação de extremistas hindus. Por isso é inegociável.

Nas últimas décadas proliferaram grupos islamo-nacionalistas como o Jaish-e-Mohammed (JeM), autor do atentado-suicida contra os militares indianos. A Índia acusa o exército e os serviços secretos paquistaneses de abrigar e apoiar o terrorismo. Para os serviços secretos paquistaneses eles serviriam de agente indirecto para fustigar a Índia, sem riscos. Por sua vez, grupos como o J-e-M dispõem de um eficaz instrumento para torpedear qualquer veleidade de acordo indo-paquistanês. O novo primeiro-ministro paquistanês, Imran Khan, deu alguns sinais de boa vontade. Disse que o Paquistão daria dois passos por cada um que a Índia desse na normalização das suas relações.

O risco de “indianização”

Durante muito tempo, Nova Deli geriu com sucesso a situação na Caxemira indiana, dotada de autonomia administrativa. É o que estará a mudar. A repressão intensificou-se e os jovens parecem estar a radicalizar-se e os movimentos terroristas parecem gozar de maior cumplicidade local. Entre 2014 e 2018, o número de “incidentes terroristas”, na terminologia indiana, passou de 222 para 614.

Nova Deli mantém a ordem com um contingente de mais de 500 mil militares. Consumando esta deriva, Narendra Modi instituiu a administração administrativa presidencial, a chamada “President’s rule”. Modi está a transformar Caxemira “numa grande Gaza e a criar um problema que pode durar séculos”, avisa Christophe Jaffrelot, historiador da Índia e do Paquistão.

O atentado de 14 de Fevereiro foi um sinal de alarme. O seu autor foi um indiano de Caxemira e não um paquistanês. Por isso alguns analistas falam no risco de “indianização do conflito”. Observa o correspondente do Le Monde que, nas manifestações, o slogan “Shariyat ya Shahadat” (“a lei islâmica ou a morte”) substituiu a antiga palavra de ordem de “Azad” (liberdade”).

Contaminação eleitoral

O Partido do Povo Indiano (BJP) e Narendra Modi representam uma corrente radical do nacionalismo indiano e não deixarão de aproveitar a tensão para consolidar o seu eleitorado e colocar a oposição em dificuldade.

Como vai ser a campanha? Resume Jaffrelot: “Quando se fala de Caxemira, vai falar-se de Paquistão. Quando se fala de Caxemira vai falar-se de muçulmanos. E quando se falar de muçulmanos volta-se a falar do Paquistão. Tudo isto faz parte do pano de fundo em que se desenrola a estratégia o BJP, que procura polarizar o eleitorado segundo uma linha de clivagem religiosa.”

Os próximos dias são um desafio perigoso, para Modi e para os militares paquistaneses que costumam ter a última palavra nesta matéria.

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