Arnaldo Matos encontra a Ceifeira

A intransigência pública do MRPP não o impedia de ter capacidade para conversar e conspirar com organizações e grupos bem longe da extrema-esquerda. Arnaldo de Matos tinha aí um papel decisivo.

Não há nada como morrer para passar de besta a sábio, e este é um velho hábito português típico de um país que, não respeitando nada, está sempre pronto para o salamaleque fúnebre. Presumo que aqui no PÚBLICO acrescento este “ruído” a várias páginas celebratórias, e por isso hesitei em escrevê-las. Mas a alternativa não era brilhante, e aqui vai. Arnaldo Matos veria com ironia a sucessão de elogios fúnebres que está a receber. Passou, morrendo, para a galeria da “situação”, ou seja, dos perversos políticos que mandam nesta nação que o “povo” populista, representado por intelectuais com o mesmo adjectivo, verbera. Mas deixemos as asneiras, e tentemos falar do homem, do percurso e do tempo que começa agora a encerrar-se por obra da Ceifeira.

Arnaldo Matos foi um activo militante do movimento estudantil que se destacou não só na sua escola, a Faculdade de Direito, mas no movimento federativo, particularmente nas chamadas “reuniões interculturais” e nos seminários de estudos associativos. Com o seu nome escreveu sobre a “cultura universitária”, em conjunto com Eduardo Prado Coelho, Jorge Veludo, Hélder Costa e outros. Destacava-se pelas suas qualidades de orador e pela escrita. Mas, a breve prazo, deixou de poder ter “legalidade” e mergulhou na vida clandestina.

Fez parte da Esquerda Democrática Estudantil (EDE), que funcionou como organização de transição para muitos quadros do PCP no meio estudantil insatisfeitos com as posições “reformistas” do partido, que depois evoluiu para o MRPP, embora na história “oficial” do MRPP sempre se tivesse negado essa génese. O MRPP foi a mais importante organização da segunda vaga da extrema-esquerda, que já não era moldada pela luta pela ortodoxia do marxismo-leninismo nos partidos comunistas que caracterizara a ruptura sino-soviética, mas sim pela influência decisiva da Revolução Cultural. Na verdade, a designação de maoísta tem muito mais sentido para estas organizações a que os franceses, falando da cause du peuple, chamavam “mao-spontex”.

O maoísmo do MRPP era total: das palavras de ordem — “fogo” sobre isto e aquilo, do “quartel-general” ao “revisionismo” e ao “neo-revisionismo”, etc. —, das gravuras copiadas dos chineses com os operários portugueses de olhos em bico, dos títulos dos jornais aos murais. Só o MRPP intitularia um jornal clandestino Yenan e colocaria o próprio Arnaldo Matos e o general Eanes naqueles grupos em marcha decidida para a frente, bandeiras e fuzis, em perfeita hierarquia de soldados, operários, camponeses e pequena burguesia revolucionária, a caminho do comunismo. O MRPP tornou-se icónico, hoje dir-se-ia viral, com as suas imagens, palavras e cores, que identificavam de imediato a organização. O MRPP foi por excelência o produtor do folclore da revolução dos anos 70 a 80.

E o MRPP foi capaz, durante quase uma década, de recrutar e mobilizar muitos estudantes e intelectuais, jornalistas e jovens operários radicalizados, principalmente em Lisboa e na sua cintura industrial. Nos meios da cultura, do cinema, das revistas culturais, nas organizações de jornalistas, e em muitas redacções, o MRPP estava lá em força. Não surpreende, por isso, que tantas pessoas da elite intelectual e política tivessem na sua biografia a passagem pelo MRPP. Já no Porto e em Coimbra permaneceu uma organização residual, pouco competitiva com o Grito do Povo, a outra organização mao-spontex.

A agressividade política do MRPP levou-o a ter um papel no incremento de acções de rua de confronto directo com a polícia antes do 25 de Abril e a começar a ter presos. Depois do 25 de Abril, entrou em choque com o MFA, tendo sido a única organização que foi sujeita a uma prisão em massa por parte dos militares no poder, com a preciosa ajuda do PCP, que os considerava “contra-revolucionários” e agentes da CIA. Arnaldo Matos foi igualmente preso e gerou um grande movimento exigindo a sua libertação.

O MRPP detinha nesses anos do PREC uma considerável influência política, na contestação a novos envios de soldados para as colónias, na influência sobre a Fretilin, na acção em certos sindicatos, e na peculiar posição que assumiu que o colocou próximo do PS e de um grupo de militares ligados a Eanes, na resistência ao PCP e às outras organizações da extrema--esquerda, como a UDP. A intransigência pública do MRPP não o impedia de ter capacidade para conversar e conspirar com organizações e grupos bem longe da extrema-esquerda. Arnaldo Matos tinha aí um papel decisivo.

Outro aspecto muito sui generis do MRPP era o modo bem pouco leninista como se entrava e saía da organização, como foi o exemplo do próprio Arnaldo Matos, que, em luta pela “linha vermelha” contra a “linha negra”, se afastou da organização, sempre com uma pertença ambígua. Dedicou-se durante longos anos à sua profissão de advogado num grande escritório de advogados, para voltar recentemente de novo ao MRPP, envolvido numa luta fratricida e excessiva com Garcia Pereira. Arnaldo Matos escreveu coisas inomináveis, quase obscenas, sobre os seus adversários, usando o pseudónimo de “Espártaco”, e a violência dos textos marcou os seus últimos anos de vida.

Contrariamente ao que se diz por aí, eu nunca fui membro do MRPP, uma daquelas falsidades que nunca morrem nas redes sociais, mas tinha relações cordiais com o Arnaldo Matos. Ainda há poucos meses encontrei-me com ele na sede do MRPP para recolher documentação para o Arquivo Ephemera, que ele sempre ofereceu. Ele atacou-me no Twitter por causa da inexistente censura a Mapplethorpe em Serralves, mas estes ataques, quase todos os ataques, fazem parte do lado para onde eu durmo melhor. Mas eu sei muito bem como tudo na história acaba por repousar, maldades e bondades. Eu não queria estar no Inferno quando chegar o camarada Espártaco. O Diabo que se cuide.

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