Condições de trabalho nos call centers: entre o pensamento e o regulamento

Espera-se, pois, de um ponto de vista da economia e do emprego, que a melhoria das condições de trabalho nos call centers não continue a quedar-se entre o pensamento e o regulamento.

“Não vos pedimos para pensarem”

Esta frase é atribuída a Frederick Winslow Taylor, o autor da Organização Científica do Trabalho [1] (OCT) que, há mais de um século, na explosão da Revolução Industrial, promoveu a hiperdivisão do trabalho como “melhor caminho” (best way) para a gestão e especialmente para a organização do trabalho.

Por estranho que pareça, esta frase ganha actualidade ao lermos dois dos projectos de resolução entrados na Assembleia da República (AR) sobre as condições de trabalho nos call centers: um projecto do Bloco de Esquerda (BE) entrado na AR em 24/1/2019 com o título Pela Regulamentação do Trabalho em Call Centers [2] e que já baixou à Comissão de Trabalho e Segurança Social; outro, do Partido Socialista (PS), entrado na AR em 20/2/2019 e discutido em 21/2/2019, sobre a “elaboração de um estudo sobre as condições de trabalho em centros de contacto (call centers)” [3]

De facto, a quem, com alguma proximidade e continuidade, acompanha a organização e condições de trabalho nos call centers e lê o conteúdo destes projectos de resolução não pode deixar de vir à memória esta frase de Taylor, de há mais de cem anos.

Os call centers têm por aí crescido cada vez mais. Praticamente, não há distrito (e, nalguns, em vários concelhos) em que não tenha sido instalado um ou mais call centers, o que, aliás, é confirmado por um estudo, relativamente recente (Outubro de 2017), da Associação Portuguesa de Empresas de Contact Centers (APECC) [4].

Com o emprego (ainda) a escassear (e especialmente no interior), é natural que os call centers sejam um sector que mereça, a nível central, regional e local, acolhimento e elogio político.

Muito por isso (mas também por, com certeza, ser rentável para os investidores [5]), os call centers tendem a crescer por aí “como cogumelos” [6]. Por isso, o que não falta por aí são declarações de autarcas, de ministros e até de primeiros-ministros, criando postos de trabalho especializados e qualificados [7]”. Colocando-se mesmo a hipótese, recorrendo a uma interrogação do jornalista Paulo Moura numa excelente reportagem no PÚBLICO: “Os call centers vão salvar a economia portuguesa?” [8]

É natural. Vindas tais opiniões de quem vêm, de fontes tão qualificadas, logo se generaliza o pensamento de que o trabalho em call centers é um trabalho qualificado.

Depois, os trabalhadores dos call centers são, muitos deles, ainda que tal pouco lhes seja valorizado nas funções que lá exercem e salários que lá recebem, pessoas com habilitações elevadas, muitos com licenciaturas e até mestrados.

Além disso, reforçando esse pensamento, os call centers, quanto mais não seja pelo equipamento que lá é utilizado, passam por emblemáticos das “novas tecnologias de informação e comunicação” (NTIC), da “inovação tecnológica”, o que logo induz a pensar que tais postos de trabalho “valorizam os recursos humanos”, que, além de qualificados, são qualificantes.

Assim, ouvindo, com o aval da comunicação social, estes pensadores qualificados dizerem que o trabalho nos call centers é “especializado”, que “valoriza os recursos humanos“, que, enfim, é “qualificado” e “qualificante”, (quase) toda a gente fica a pensar que em todos os call centers os trabalhadores têm salários compatíveis com as suas habilitações, que estas são aplicadas nas suas funções, que se realizam profissionalmente, que tal trabalho é a antítese de um trabalho penoso, intensificado, desqualificado e desqualificante. Que, enfim, os trabalhadores dos call centers têm boas condições de trabalho.

Ora, em geral, não é isso que pensa quem entra num call center e, sobretudo, quem acompanha de perto e com atenção em que condições se trabalha em muitas dessas organizações de prestação de serviços. Como, aliás, consta da “exposição de motivos” desses projectos. Ou seja, que o trabalho em call centers é muito precário, mal remunerado e, sobretudo, penoso, sobreintensificado, com consequências de riscos graves para a saúde (física e mental) dos trabalhadores. 

Será mesmo assim? Numa actividade que, pelo sistema técnico que utiliza, nos induz a pensá-la como da “Quarta revolução Industrial”, será que temos exemplos de organização do trabalho e de condições de trabalho da “Primeira Revolução Industrial”, dos “tempos modernos” de trabalho desqualificado, desqualificante e alienante?

Pensando um pouco mais sobre isso, conclui-se que, de facto, no século XXI, apesar do discurso da “inovação e desenvolvimento” (ID), da “inteligência artificial” (IA) e dos “novos” modelos de gestão, restam por aí ainda bastantes exemplos (nas instalações, nos equipamentos, nos modelos e práticas de gestão, sobretudo na organização e condições de trabalho) relativamente fidedignos desses (novos) “tempos modernos”.

E, a par disso, há também, ainda que mais disfarçados e diferenciados pelo discurso da “inovação tecnológica” e recurso às NTIC, outros exemplos de organização e condições de trabalho que, (ainda) neotailoristas, muito se assemelham (ainda que de forma menos visível) às de há cem anos, no tempo de Henry Ford. Alguns destes exemplos são, precisamente, não todos mas sempre demasiados, os call centers. Por mais que haja quem assim não pense.

É certo que já não é o tapete rolante da cadeia de produção a impor o ritmo intenso de trabalho. Mas é a sistemática condição de precariedade (por regra, trabalho temporário, ao serviço de empresas subcontratadas pela empresa utilizadora final do trabalho [9]) que a tudo faz sujeitar, a gestão informática da distribuição dos atendimentos, os prémios ou penalizações conforme a performance, fazendo manter o trabalho em “fluxo tenso” (praticamente sem pausas), que impõem que o trabalho em muitos call centers seja (sobre)intensificado até quase ao limite da capacidade física ou mental das pessoas [10].

É certo que o controlo hierárquico (sobre a quantidade e a qualidade dos atendimentos, que podem ou não determinar acréscimos de remuneração) já não é tão presencial, de proximidade pessoal, “biológico”. Mas, mais rigoroso ainda, é, invisível e à distância (mas, para os trabalhadores, mentalmente pressionador, sempre presente), tecnológico.

É certo que nestes locais de trabalho é mais próprio falar-se não de trabalho em cadeia, mas de trabalho em rede. Só que é suposto que as redes sejam sistemas de colaboração e não sistemas de exploração, “aranhas” telefónicas ou informáticas que, na “teia” mercantil e laboral que tecem, aprisionam económica ou socialmente as pessoas, quer estas sejam clientes/utentes do sistema, quer sejam seus trabalhadores.

Mas, para além de outras semelhanças com a organização do trabalho que Ford adoptou como best way, uma há que, mais diferenciada, interessa aqui destacar e que mais actualidade confere à citação inicial deste texto, à frase de Frederick Taylor para os trabalhadores de então: “Não vos pedimos para pensarem”.

De facto, naqueles “tempos modernos”, os trabalhadores nas cadeias de produção, sujeitos a um ritmo intenso e a permanente controlo, se bem que para o trabalho não necessitassem de pensar (visto que para as tarefas, elementares, hiperdivididas e rotinizadas, bastavam-lhes os braços), podiam pensar livremente. Mas não podiam falar, porque assim perderiam tempo, prejudicando o ritmo de trabalho dos que os precediam e sucediam no tapete rolante das peças, suporte da cadeia de produção.

Ora, por regra, nos call centers, nas suas funções de atendimento, os trabalhadores não podem expressar-se livremente, na forma e conteúdo que, em cada circunstância, conforme o interlocutor e o assunto, consoante os seus hábitos, as suas capacidades relacionais e os seus valores (por exemplo, o da honestidade de não “enganar o cliente” sonegando-lhe informação importante), pensam ser a mais adequada naquele, sempre singular, (tele-)relacionamento pessoal.

Por formação e por disciplina, é-lhes imposto pelos manuais de procedimentos (chamam-se mesmo “manual de frases”), sob a permanente “supervisão” à distância (que, por vezes, inclui um “cliente mistério”) de (in)cumprimento, a estrita utilização de palavras e frases rigidamente estabelecidas (ou proibidas) para o “acolhimento”, para o “atendimento”, para a “despedida”, etc..

Isto é, se nos “tempos modernos” de Taylor e Ford que Charlot tão bem caricaturou os trabalhadores podiam pensar livremente mas não podiam falar, agora, em muitos call centers, os trabalhadores podem (devem) falar, mas não podem pensar livremente… o que falam.

Sem dúvida, os call centers e em geral o sector de serviços já dão, e poderão dar ainda mais, um contributo determinante para o crescimento da economia e do emprego. Mas isso não impede que continue a haver quem pense que tal é compatível e até não prescinde, como prioridade da economia, de, citando o primeiro-ministro, “melhor emprego, digno, com condições de trabalho, salário justo e oportunidade de realização profissional”.

Estes projectos de resolução em discussão na Assembleia da República, ao pretenderem o estudo e a regulamentação do trabalho em call centers (à falta de condições para criar uma convenção colectiva de trabalho) visam, justamente, criar algo que urge, referências regulamentares específicas para que, (também) neste específico sector, se concretize, pela inerente regulamentação e respectiva regulação (mais) sustentada), esse pensamento político e social.

Espera-se, pois, de um ponto de vista da economia e do emprego (e, por este, de um ponto de vista da saúde, da família, da educação...), que a melhoria das condições de trabalho nos call centers não continue a quedar-se entre o pensamento e o regulamento.

[1] Mais exactamente, Princípios da Administração Científica (The Principles of Scientific Management ), de 1911

[2] Projecto de Resolução N.º 1948/XIII/4.ª, entrado na AR em 24/1/2019 e que baixou à Comissão de Trabalho e Segurança Social em 25/1/2019 - https://www.parlamento.pt/ActividadeParlamentar/Paginas/DetalheIniciativa.aspx?BID=43339

[3] https://www.parlamento.pt/ActividadeParlamentar/Paginas/DetalheIniciativa.aspx?BID=43463

[4] https://www.apcontactcenters.org/ - file:///C:/Users/user/Desktop/EM%20CURSO/Call%20centers%20petição%20AR%20-estudo%20da%20Assoc.Contact%20Center.pdf

[5] O volume total de negócios, conforme o estudo da APECC, é de 1.165.906.029 euros.

[6] Ainda segundo o estudo da APECC, de Outubro de 2017, o sector era composto por 64.772 “postos de atendimento”, empregando 81.615 trabalhadores;

[7] Recorda-se uma frase do ex-PM eng.º José Sócrates, em Agosto de 2008, em Santo Tirso, anunciando a criação ali de um call center da PT com (sic) “1200 postos de trabalho qualificados”.

[8] “Os call centers vão salvar a economia portuguesa?”- PÚBLICO de 11/8/2013 - https://www.publico.pt/2013/08/11/jornal/os-call-centers-vao-salvar-a-economia-portuguesa-26943803

[9] Contratos de trabalho temporário (CTT) com prazos exíguos, alguns ao mês e até à semana, sistemática e ilegalmente renovados em postos de trabalho permanentes, visto que, de facto, tais postos de trabalho são sempre os mesmos, apesar de, formalmente (nos CTT) serem caracterizados como “diferentes” para justificarem “legalmente” (mais) “outro” CTT.

[10] Vários estudos garantem como repercussões do trabalho em call centers as lesões e doenças músculo-esqueléticas, a fadiga visual e auditiva, o cansaço (se não esgotamento) físico e mental (burn out).

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