Caso do Bairro da Jamaica: MP pede pena suspensa e multas para detidos na manifestação

Sentença de jovens que participaram numa manifestação organizada na sequência do caso ocorrido no bairro será lida a 7 de Março. Testemunhas acusam polícia de usar calão racista.

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Daniel Rocha

O Ministério Público (MP) pediu esta sexta-feira, no âmbito do processo em que estão a ser julgados quatro jovens detidos na manifestação na sequência do caso do Bairro da Jamaica, pena suspensa para todos os crimes imputados aos arguido B.A., prisão com substituição por multa para dois dos jovens, B.F. e de J.J., e multa para T.

A procuradora manteve assim a acusação a quatro jovens que participaram na manifestação de dia 21 de Janeiro, na Avenida da Liberdade, em Lisboa. A manifestação foi organizada como protesto contra a violência policial e em solidariedade com uma família daquele bairro.

Dois dos arguidos respondiam pelos crimes de ofensas à integridade física e participação em motim; outros dois jovens por injúrias e ofensa a integridade física qualificada na forma tentada. Todos negam as acusações — e três dos quatro referem que os agentes os ameaçaram por estarem a filmar a manifestação.

O protesto de dia 21 começou no Terreiro do Paço, em frente ao Ministério da Administração Interna, prosseguiu até ao Marquês de Pombal e no regresso pela Avenida da Liberdade acabou com a polícia a atirar balas de borracha e a acertar em alguns manifestantes — a PSP justificou a acção com a necessidade de dispersar e de se defender de “pedras” que lhe foram atiradas.

O despacho do MP acusa dois jovens de terem atirado pedras aos agentes durante a manifestação, um outro jovem de ter atirado uma garrafa de água e outro ainda de injúrias. Refere também que causou danos nos escudos e num capacete no valor de mais de 1700 euros.

Depoimentos com contradições

Nas suas alegações esta sexta-feira, a procuradora do MP considerou que os depoimentos dos quatro jovens em tribunal não tinham credibilidade e apresentavam contradições. Pelo contrário, os depoimentos dos agentes Hugo da Palma Santos e Luís Moreira mereceram “grande credibilidade”, afirmou, dizendo inclusivamente que um deles tinha sido "muito sincero”. Sublinhou ainda que era “irrelevante” saber se as pedras arremessadas pelos dois arguidos acertaram ou não nos agentes. O que interessa é que havia "a intenção de provocar danos, de agredir”, referiu.

Já o advogado dos jovens, Vasco Seabra Barreira, sublinhou que os depoimentos dos agentes da PSP em tribunal foram marcados por “contradições” e que isso “não permite ao tribunal formular uma convicção segura” de que pode condenar os jovens.

Lembrou que apenas um agente, Hugo Rodrigo da Palma Santos, disse ter visto um dos jovens, B.A., a atirar uma pedra mas que o vira no meio de um grupo, ou seja, não poderia ter a certeza de se tratar efectivamente da mesma pessoa. É inverosímil, referiu, que alguém culpado vá ter com os agentes, como B.A. o fez, “dispondo de uma rota de fuga”. O mesmo tipo de comportamento teve J.J., também acusado de atirar pedras, que foi ter com o mesmo agente da PSP, sublinhou o advogado. 

Vasco Barreira referiu ainda que “mais nenhum agente” além de Hugo Santos viu os dois jovens atirarem pedras. “As acusações do MP assentam exclusivamente na palavra de um dos agentes. O MP abdicou de recolher meios de provas, limitou-se a dizer que os factos ocorreram em frente ao Cinema São Jorge e foram os arguidos que vieram dizer que foi em frente ao Hotel Tivoli." E acrescentou: “Não chega. A palavra da PSP não pode valer mais do que a palavra de cidadãos. A palavra destes agentes está recheada de contradições.” 

Quanto aos jovens acusados de injúrias, B.F. e T., referiu que foram detidos apenas porque para o agente Moreira foi “intolerável” eles estarem a filmar “ostensivamente” (palavra do agente Moreira) as detenções. Não foram recolhidos meios de prova como a referida garrafa de água que teria sido atirada por B.F., disse. E no vídeo entregue ao tribunal, filmado pelo próprio T., ouve-se a sua exaltação mas em momento algum se ouvem injúrias, sublinhou. 

Calão sexista e racista, acusam testemunhas

Antes, ainda esta sexta-feira, foi ouvido o realizador João Salaviza, que contou ao tribunal parte do que já havia testemunhado ao PÚBLICO no dia dos acontecimentos. Presente na manifestação por acaso, viu sobretudo jovens afrodescendentes num protesto pacífico durante a subida para o Marquês de Pombal e depois na descida. A determinada altura ouviu um barulho, que podia ter sido de balas ou de petardos, afirmou. Não viu, porém, nenhuma pedra. “Ouvi um depoimento de [um agente] em que é mencionado que havia centenas de pedras. Se é plural teria que ser no mínimo 200, eu não vi uma única pedra.”

O realizador acrescentou que se sentiu “ameaçado na sua integridade física” pelas balas da polícia. “Tive que me baixar e vi turistas a atirarem-se para o chão também.” Questionado pelo advogado dos jovens sobre se tinha ouvido injúrias, João Salaviza referiu que tinha testemunhado agentes da PSP fardados a usar “calão sexista para duas raparigas: ‘suas filhas da puta vão para o passeio’ e várias vezes ‘seus pretos de merda vão para o passeio”. 

Há uma semana, outra testemunha, Miguel Baptista, docente universitário na Faculdade de Direito de Lisboa, referiu que “havia uma diferença de comportamento em relação" a ele e em relação aos "manifestantes que eram negros”. Disse também que tinha ouvido injúrias racistas de alguns agentes como “esses pretos”. E ele próprio acusou um dos polícias de o ter empurrado e de começar a ser violento dizendo “sais imediatamente daqui antes que eu te parta os cornos”.

“Pretos de merda”

Nessa sessão, também o jovem Geovani Barros, que esteve na manifestação desde o início, disse ter visto "mais ou menos" sete pessoas a arremessar pedras, mas “não eram negras”. E acusou também alguns agentes de terem proferido ofensas durante o protesto como “pretos de merda” ou “vão trabalhar, o que é que estão a fazer aqui a uma segunda-feira?” 

A procuradora do MP começou as suas alegações dizendo: “Não estamos a julgar a conduta da PSP mas apenas os arguidos”. O advogado dos jovens contrapôs: “Na medida em que a acusação assenta essencialmente na palavra destes agentes a conduta da PSP é essencial.”

A leitura da sentença está marcada para o próximo dia 7 de Março. 

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