Um doente, um médico e um cientista a discutir o cancro: por que razão nos escapa?

Foi a primeira de quatro conversas sobre saúde à volta de uma pergunta, organizadas pelo Instituto de Medicina Molecular, em parceria com a Fundação Belmiro de Azevedo. Fernando Rosas foi um dos que deu o seu testemunho: é fundamental ter confiança no médico – saber que “não nos engana nem tem um discurso irritantemente optimista”.

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Fernando Rosas diz ter “sorte”. Sem sintomas do tumor nem das metáteses no fígado, aos 72 anos, é como se tivesse uma doença crónica que gere sem grande angústia Miguel Manso
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Luís Costa (à direita) desconstrói a tese de que “não há doenças, há doentes”. Bruno Silva-Santos (à esquerda) diz que "na ciência temos que acreditar que o que não sabemos hoje, vamos saber amanhã" Miguel manso

Um doente, um médico e um cientista estão à volta de uma pergunta: por que razão o cancro nos escapa? O doente é o historiador Fernando Rosas, diagnosticado há 12 anos com um tumor neuroendócrino na cauda do pâncreas e desde então acompanhado por Luís Costa, o médico, também director do departamento de Oncologia e do Centro de Investigação Clínica do Hospital de Santa Maria, em Lisboa. Ao lado, Bruno Silva-Santos, o investigador, vice-director do Instituto de Medicina Molecular (iMM), onde desenvolve estratégias imunoterapêuticas para o cancro. Os três professores universitários sentaram-se na quarta-feira, ao fim do dia, no auditório da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa para falar sobre a grande doença do século.

Fernando Rosas dá a volta à questão inicial: “A pergunta do doente é 'por que razão nós não escapamos ao cancro?'” Não haverá, na maioria das vezes, uma resposta. Na sua experiência, é fundamental ter confiança no médico – saber que “não nos engana nem tem um discurso irritantemente optimista” – e estar informado. “Eu acho que o doente, na medida das suas possibilidades, tem que participar activamente na luta contra a doença. O que significa, que não deve fazer dela um caso puramente individual e assumir uma atitude egoísta.”

Diz não ter medo da morte. “Por enquanto, nunca senti esse medo. Não sou religioso, não acredito no mundo do além, mas acho que a vida tem que ser vivida intensamente enquanto existe.” Parte disso, para si, é estar consciente da sua situação clínica, conhecer as possibilidades de tratamento, ter algo a dizer nesse processo.

Neste aspecto, há pessoas com posturas opostas. Havendo mínimos que um médico tem que comunicar, Luís Costa conta a “verdade que o doente quer saber”. “Eu não o obrigo a saber uma verdade que não me perguntou.” Para os casos em que a medicina não arranjou ainda hipóteses de cura, mas há formas de controlar a doença, o doente pode perguntar “Durante quanto tempo?” Mas não deve ser obrigado a fazer essa pergunta.

Luís Costa recorda o caso de um doente que, enquanto lhe fazia perguntas sobre o seu trabalho e percurso de vida, abriu o jornal que trazia e começou a lê-lo à sua frente. “Ele estava a querer dizer: ‘Não faça perguntas que eu não quero responder.' Depois falamos muito sobre o cancro. Mas naquele momento ele não queria."

A incerteza

Este processo de compreensão médico-doente pode levar anos. Luís Costa desconstrói a tese de que “não há doenças, há doentes”. “Não é só a forma individualizada como a doença se pode comportar, mas a forma como se reage ao que vem aí é diferente de pessoa para pessoa. Há uma história por trás. Às vezes penso que sei tudo sobre o doente, mas só passado meses ou anos é que entendo por que é que o doente reage de determinada maneira.”

Há diferentes expectativas para gerir. Quando há cura, fala-se no futuro: haverá problemas de novo? Quando a cura é incerta, as probabilidades vêm a jogo. Mesmo que Luís Costa não as traga para as consultas – diz apenas se há ou não “boas probabilidades” de ficar curado –, a Internet entrega alguns números numa pesquisa rápida. No caso de haver 80% de probabilidade de cura em cinco anos, “há pessoas que se vêem no lado dos 80%, outras no dos 20%”, e com base nisso gerem a sua vida, os seus planos. “Esta é a primeira questão que nos escapa: a incerteza.”

Para muitos doentes, a doença também resvala para a insegurança: “Porque fui diagnosticado por acaso? Qualquer coisa pode estar a acontecer-me que eu não dou conta” – é um pensamento frequente nos utentes, retrata o médico. Também Fernando Rosas soube com uma TAC, não esperava encontrar um tumor. “Tentamos diminuir esta incerteza o melhor possível com o conhecimento da ciência, com a experiência clínica, mas é um processo em curso,” diz Luís Costa. Só ao longo do acompanhamento se percebe que terapêuticas resultam, as expectativas vão-se alterando.

Fernando Rosas diz ter “sorte”. Sem sintomas do tumor nem das metáteses no fígado, aos 72 anos, é como se tivesse uma doença crónica que gere sem grande angústia. “Ao longo destes 12 anos continuei a dar aulas, a escrever, a intervir civicamente. Até agora, nunca senti necessidade de tomar uma decisão em função da doença. E, no meu dia-a-dia, não penso muito nisso. A doença está aqui, mas nunca me condicionou a cabeça. Enquanto tiver força nas pernas e juízo na cabeça, vou continuar a fazer o que tenho feito até agora.”

Sendo o sistema imunitário afectado por questões hormonais, este optimismo conta? Luís Costa não acredita que quem está pessimista ou deprimido tenha uma condenação. O optimismo ajuda, mas “não há ciência” para ele, concorda Bruno Silva-Santos. É difícil medir até que nível tem benefícios. “É como a alimentação. Sabemos que uma série de vitaminas são importantes para o sistema imunitário, mas não é por isso que um doente de cancro deve consumir vitaminas em quantidade industrial.” Além disso, há factores com maior impacto: “Não há optimismo que salve um fumador.”

A imunoterapia

Silva-Santos foi para Londres em 1998 fazer doutoramento em Imunologia na University College London, numa altura em que o estudo do sistema imunitário era “visto como quase uma heresia na investigação” nesta área. A imunoterapia veio revelar-se depois disso uma das grandes esperanças no tratamento da doença.

Para o imunologista a pergunta inicial tem duas fases. “Como é que o cancro surge?” – embora o sistema imunitário tente evitá-lo, as imunodeficiências podem tornar determinados organismos mais susceptíveis ao desenvolvimento da doença. “Temos que fazer com que o sistema imunitário acorde perante esta massa que está a ganhar a batalha e que a reverta.” Além disso, embora haja excepções, à imunoterapia “chegam os cancros que escapam às outras terapias” (cirurgias, radio e quimioterapia, terapias alvo,…).

O que a equipa de Bruno Silva-Santos no iMM faz neste momento é a “educação em laboratório” de glóbulos brancos do doente com quatro formas moleculares diferentes para que estas células imunitárias possam “alvejar o tumor”. Testaram com dois tipos de leucemia e agora no cólon. Esperam até ao fim do ano começar a testar a terapia em doentes.

Mais uma vez coloca-se a questão da heterogeneidade da doença e de quem a tem. Enquanto 90% pode beneficiar da terapia, nos restantes 10% pode não ter qualquer efeito. “O cancro desenvolve-se a partir de uma célula da pessoa, baseando-se no mesmo material genético. Tecnicamente há tantos cancros quantas as pessoas que os têm”, completa Luís Costa. A investigação continua a desbravar terreno e do que muito do que se virá desvendar poderão ser contributos da análise molecular de tumores.

“Na ciência temos que acreditar que o que não sabemos hoje, vamos saber amanhã. Não há nada na biologia que nos possa escapar em absoluto”, reitera Bruno Silva-Santos. “Sabemos quantos genes temos, cada vez sabemos mais sobre a função daquilo que não são genes, portanto estamos a conquistar armas para manipular a nossa pool genética e não genética.” A imunoterapia procura o que distingue os tumores das células saudáveis. “Só temos que fazer o zoom nas pequenas diferenças e arranjar ferramentas para lidar com elas.” Aliás, os imunologias são “particularmente optimistas”, afirma, pois vêem em cada ser humano o potencial de dez milhões de milhões de células imunitárias. “Temos um exército gigante do qual podemos seleccionar soldados e educá-los em batalhões para aquilo que é preciso combater.”

Moderado pela jornalista Graça Franco, esta foi a primeira de quatro conversas do ciclo “Horizontes iMM: uma pergunta a três”, organizada pelo instituto em parceria com a Fundação Belmiro de Azevedo. Em Março (dia 20) discutem-se as doenças neuromusculares, em Junho (dia 1), já com moderação de António Barreto, vai-se falar de Parkinson e em Outubro (dia 16) das doenças vertebro-medulares. Sempre no mesmo esquema: um doente, um médico e um cientista.

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