Os impostos são fundamentais “para religar a Europa aos cidadãos”

Nuno Sampayo Ribeiro, especialista em direito fiscal, acredita que Portugal só teria a perder com o fim da regra da unanimidade na votação de propostas fiscais na UE. São precisos consensos duradouros e o actual modelo, diz, é a melhor forma de o conseguir.

Desde a revolta da Maria da Fonte no Portugal de 1846 às revindicações dos coletes amarelos na França de 2018, passando pelos anos da troika em que um coro de protestos travou a subida da Taxa Social Única, a história das “revoltas fiscais” mostra como os impostos estão no âmago das preocupações dos cidadãos, diz Nuno Sampayo Ribeiro, advogado especialista em direito fiscal.

A globalização tal como a conhecemos acabou, a era do “laissez-faire fiscal” ficou para trás e, para sintonizar o projecto europeu com os cidadãos, será essencial o papel da tributação. Acabar com unanimidade obrigatória para decidir, diz, não é uma boa ideia.

A fiscalidade é dos poucos domínios onde prevalece a regra da unanimidade para aprovar decisões na União Europeia (UE). Voltamos a discutir o seu fim por falta de consenso em determinados dossiers, como a taxa sobre as transacções financeiras e a tributação das empresas digitais?
Existe uma pretensão, já longa, da Comissão Europeia. Já a fez, por exemplo, em Nice na Convenção Europeia. E surge agora estranhamente uma nova tentativa ancorada na expressão “passerelle clause” [cláusula-ponte]. A verdade é que a própria Comissão verifica que foram dados importantíssimos saltos na integração fiscal europeia, “apesar” — estou a utilizar a terminologia oficial — “da regra da unanimidade”. Houve avanços, por exemplo, na eliminação do sigilo bancário para efeitos fiscais, nas directivas da cooperação administrativa, nas obrigações de transparência dos intermediários fiscais (bancos, advogados, consultores), nas listas das jurisdições não-cooperantes [paraísos fiscais]. Ora, tudo isso são razões suficientes para nos demonstrar objectivamente que é possível aprofundar a integração europeia com a regra da unanimidade.

Por que é que diz que a proposta surge “estranhamente” agora na recta final da Comissão Juncker?
Não apenas porque está na fase final do mandato, mas porque a ordem internacional europeia está no centro de alguma turbulência, para não dizer desconfiança. Desde 2015 venho apresentando a ideia de que a globalização terminou tal qual a conhecemos. Vemos hoje a afirmação de uma preocupante dinâmica de my country first, da qual a reforma do senhor Trump é um preocupantíssimo exemplo. Quando lemos esta comunicação da Comissão [onde defende a passagem para uma votação por maioria qualificada], falta uma reflexão sobre o perigo de um determinado imposto ser aprovado perante o voto contrário de um determinado Governo, que, ao introduzi-lo no seu país, se depara com a resistência dos seus cidadãos.

Isso também não acontece quando há a regra da unanimidade?
A unanimidade nada exclui, a não ser soluções não compromissórias. Quando estamos no fenómeno da integração europeia, não podemos esquecer que os Estados não deixaram de o ser — associaram-se e integraram-se para determinados fins, que têm de ser ponderados do ponto de vista da sua razoabilidade. Ocorre-me lembrar uma expressão do professor Paulo de Pitta e Cunha: os “excessos de integração”... Considero-me um pró-europeu. É fundamental reabilitar e renovar o projecto europeu, que há muito tempo se desviou dos seus objectivos e estará, porventura, numa deriva económico-financeira que atentará contra a sua subsistência. É fundamental religar o projecto europeu aos cidadãos. A questão da tributação é absolutamente fundamental [para isso]. Para um país como Portugal, a regra da unanimidade é absolutamente essencial para a criação de políticas públicas que promovam inovação, emprego qualificado e duradouro, e assegurem uma adequação do sistema económico português à transformação dos padrões de produção globais, que estão a ser desestruturados devido às tecnologias digitais.

Há países que poderão aproveitar o fim da unanimidade, mais do que Portugal?
Sim. Quanto mais integrados se tornam os mercados, mais importantes são as vantagens da localização geográfica para a competitividade das empresas. O imposto cumpre uma de três funções: reditícia, através da qual é possível dar resposta às necessidades colectivas; distributiva, ou seja, para promover a dita despesa fiscal; e estabilizadora, por exemplo, no caso dos subsídios de desemprego.

A concorrência agressiva não agravou, no conjunto da União, esses objectivos?
Quando um Estado não tem instrumentos que permitam atrair e fixar investimentos, quais são os recursos que tem? A fiscalidade é um desses recursos. Naturalmente, temos o problema de saber se há uma utilização legítima da configuração da política fiscal e, aí, surge o problema difícil da concorrência fiscal prejudicial. E depois há a utilização de técnicas de planeamento fiscal por parte de grandes empresas (muitas vezes explorando as diversidades conceptuais dos países, incompatibilidades técnicas e chegando a resultados que são pura pirataria social, no sentido em que têm relevantíssima presença nos mercados e não pagam impostos).

É essa discussão que não está a ser tida quando se discute o fim desta regra?
Penso que está a ser tida. Uma coisa é a bondade da medida, outra é o processo de decisão. Uma coisa é decidir por unanimidade, outra é decidir por maioria qualificada. O que é que sucederá se um determinado Governo se opõe a uma medida que é depois aprovada? Vai chegar junto da sua opinião pública e aplicar esse imposto? E se a opinião pública rejeita? A história ensina-nos que as revoltas fiscais estão na origem de muitos países. E basta pensar que em Portugal, não há muito tempo, houve — não diria uma sublevação — mas [uma manifestação contra] a Taxa Social Única [em 2012, que motivou um recuo do Governo de Pedro Passos Coelho]. Se formos mais atrás, a revolta da Maria da Fonte esteve ligada a questões de desaprovação do imposto que se pretendia introduzir.
A regra da unanimidade é a que melhor pode originar consensos duradouros, que asseguram depois uma base de legitimação e de validação política dos impulsos legislativos que os Estados recebem.

Portugal não pode, ao mesmo tempo, criar alianças com outros países para conseguir aprovar com uma maioria qualificada aquilo que entende que deve avançar?
Não há vantagem em haver movimentos por maioria qualificada em matéria tão sensível como, por exemplo, a tributação do rendimento. É essencial criar condições para que o que exista possa funcionar de forma harmoniosa; e essa harmonia está desde logo ligada ao elemento de vinculação e legitimação política do imposto. Se formos à história da Humanidade, verificamos que já em 1215 o impulso da Magna Carta, considerado a origem do Constitucionalismo, fixou a necessidade de haver limites à própria tributação e é por isso que ainda hoje temos o princípio da anualidade do imposto, ou seja, o imposto é votado anualmente pelos eleitos pelo povo em eleições livres.

A Comissão diz que as decisões que os governos demoravam anos a tomar hoje têm de ser tomadas em poucos meses. Haverá consensos mais rápidos mas menos duradouros e por isso mais imprevisíveis?
Tenho dificuldade em aceitar a colocação do problema [da forma como a Comissão Europeia o coloca]. Em 2013, na sequência do caso Jérôme Cahuzac — o ministro francês com o pelouro do combate à evasão fiscal que tinha uma situação curiosa de rendimentos não declarados na Suíça — a Europa avançou decisivamente como líder mundial na luta contra a evasão e a fraude fiscal. O que se verificou foi a capacidade de grandes impulsos, removendo a resistência férrea de países como a Áustria, a Bélgica, o Luxemburgo. E tudo isso terá sido viabilizado pela regra da unanimidade, justamente porque a opinião pública exigia essas medidas.

A maioria qualificada põe em causa a reserva de soberania dos Estados?
É pena que a comunicação da Comissão Europeia [na qual defende o fim da regra da unanimidade] esteja estruturada numa lógica puramente económico-financeira. Era importante que estivesse estruturada com uma reflexão sobre os perigos que podem advir de uma solução aprovada por maioria qualificada que não tenha aceitação num país.

Teme que possa alimentar movimentos populistas?
Se olharmos para França, a reivindicação fiscal inclui ou não o caderno dos coletes amarelos? Grande parte das instituições já não serão representativas das aspirações, necessidades e preferências das bases sociais que estão na sua razão de existir.

Portugal integrou-se numa zona das maiores potências do mundo, onde tem naturalmente dificuldades de concorrência com os principais players, quer em termos de avanços tecnológicos, quer em termos de capital. Por outro lado, verifica-se a emergência de novas realidades que competem com Portugal naquilo que são os produtos e serviços menos sofisticados. Os indicadores do PIB regional colocam Portugal entre as regiões mais pobres da UE, que a dívida pública é das mais elevadas e o nível de poupança é também muito reduzido.

Tudo isto convida a que Portugal desenvolva políticas estruturais que possam levar a níveis mais compensadores de vida. A única política pública com potência para criar oportunidades económicas a partir de Portugal é a política fiscal. É absolutamente central que Portugal mantenha regra da unanimidade, até para ter capacidade de decisão. E tem uma outra vantagem: afirma uma igualdade de facto nas negociações, porque um Estado tem sempre a capacidade de impedir esse avanço se o considera contrário aos seus interesses vitais. É um precioso elemento de negociação em prol de formas de solidariedade no aprofundamento da integração europeia, que é do interesse estratégico de Portugal.

Quem defende a mudança para a maioria qualificada diz: países conhecidos pela sua concorrência fiscal, como a Holanda, a Irlanda ou o Luxemburgo, usam a regra da unanimidade para bloquear um conjunto de decisões. Como é que olha para esse argumento?
Da mesma forma que olho para aquilo que sucedeu com o segredo bancário para efeitos fiscais, quando era a solução da Áustria, da Bélgica e do Luxemburgo. Isso acabou por ser resolvido. Uns dirão: “Tinha de ser resolvido há mais tempo”. Bom, como se costuma dizer, depressa e bem não há quem. Os Estados mantêm a sua identidade, são realidades políticas, não são realidades económico-financeiras (também são realidades económico-financeiras). Uma comunidade só pode subsistir se for um espaço de vivência da diferença. A questão está em saber qual é a diversidade fiscal compatível com o funcionamento da união económica e monetária, e particularmente do mercado único.

Como é que um Estado pode usar o elemento de concorrência fiscal sem resvalar para uma concorrência fiscal agressiva? Vamos a casos concretos: Portugal tem neste momento um regime de residentes não-habituais.
É um pouco como a história da moto: a moto não é perigosa, a condução é que pode ser. Uma coisa é concorrência fiscal, outra é concorrência desleal. Todas as organizações internacionais consideram a concorrência fiscal um meio idóneo. É tudo uma questão de intensidade. O aspecto que refere [o regime dos residentes não-habituais] tem de ser visto no concreto e na sua circunstância. Portugal porventura não terá ponderado suficientemente o tipo de cooperação internacional que se está a gerar e muitas das soluções que criou poderão, porventura, estar fora de época e — numa fase em que é cada vez maior a oposição das opiniões públicas e o empenho dos Estados na concessão de vantagens fiscais que permitam excesso de manobra para que grandes empresas ou os ditos super-ricos não paguem os impostos — a legitimação da medida passa naturalmente pela linha de interrogação que suscitou. Determinado tipo de situações que perderam a licença social e que não podem manter-se em vigor no sentido em que são atentatórias da própria coesão e integridade social e do bom relacionamento dos países, porque sentem que estão a ser prejudicados nos seus interesses patrimoniais.

Com o “Brexit”, Londres poderá usar a saída da União Europeia para exercer maior concorrência fiscal em relação aos países europeus. Isso influenciou a decisão da Comissão Europeia?
Penso que não. É uma pretensão já antiga.

Um dos dossiers mais discutidos é a tributação do digital. O imposto GAFA [Google Amazon Facebook Apple] teve a oposição de quatro governos: Irlanda, Suécia, Dinamarca e Finlândia. Como nas outras medidas, mais cedo ou mais tarde chegaremos à unanimidade?
Será uma inevitabilidade. A UE é um agente activo dos trabalhos que através da OCDE estão a ser coordenados pelo G20 na iniciativa do Base Erosion and Profit Shifting Action Plan [plano para evitar a erosão da base tributária e o desvio de lucros], cujo objectivo é alinhar a tributação com o lugar onde a actividade é desenvolvida e onde o valor é criado. O plano decompõe-se em 15 medidas da maior complexidade e vai tirar partido dos novos instrumentos tecnológicos — do data mining, da blockchain. A emergência do dinheiro digital vai aumentar em muito a capacidade das autoridades de fazerem o rastreio dos fluxos financeiros e, nesse sentido, verificar onde é que estão os factos tributários e qual é que o imposto devido. É uma importantíssima medida de justiça fiscal, assegurando que cada um paga o seu imposto na medida da sua capacidade contributiva e fechando verdadeiras zonas de pirataria fiscal desenvolvidas por grandes empresas à escala internacional que em muitos casos utilizam as incompatibilidades técnicas dos regimes [fiscais] e operam servindo-se das infra-estruturas públicas dos países não pagando o imposto, que é aquilo que recai sobre cada cidadão e criando uma concorrência desleal com as pequenas e médias empresas.

Portugal tem importantes grupos económicos portugueses presentes em territórios conhecidos pela sua agressividade fiscal. As empresas tomaram consciência de que entrámos nessa nova fase e que as escolhas do passado podem revelar-se contra si do ponto de vista reputacional?
Não conheço a realidade de cada empresa e, portanto, saber se estão ou não estão identificados com a realidade. Posso apenas supor que é um imperativo ético estar informado e um dever fiduciário para com os seus accionistas e a comunidade em que se integram.

Mas numa leitura geral, de tecido económico...
... As empresas portuguesas integram-se no mercado único europeu, que assegura a liberdade de circulação. É absolutamente legítimo que utilizem as liberdades do tratado para aquilo que ele existe. Coisa diferente é saber como é que estão organizados os seus assuntos fiscais. Não haverá como o teste da realidade para verificar se as operações internacionais estão ou não em condição de resistir à aplicação da nova geração de normas anti evasão fiscal, que procuram o alinhamento da tributação com o valor económico criado e local onde é criado. Será o teste da resistência fiscal em termos de saber se aquela operação é considerada legítima ou uma montagem artificial.

A era da fair taxation [justiça fiscal] veio para ficar.
É inegável. Entrámos numa nova fase, em que a era do “laissez-faire fisca” acabou. É fundamental entender a tributação como uma fonte de risco legal e reputacional. O ponto central está em saber qual é o grau de protecção que um contribuinte, seja ele pessoa singular ou colectiva, relativamente à percepção que se pode gerar de ter uma situação tida por legal, mas injusta face ao dever geral de solidariedade de contribuir na medida da sua capacidade contributiva.

Andámos mais rápido do que muitos antecipavam?
A UE, validando a regra da unanimidade, conseguiu progressos que muitos considerariam impensáveis. Se verificarmos as propostas feitas entre 2010 e 2012, elas nem sequer estavam, em boa medida, nas prioridades editoriais dos principais mass media. Portugal, infelizmente, fez um caminho doloroso nesse sentido — transpôs directivas fora de prazo —, mas congratulo-me com a circunstância de o país ter avaliações que nos colocam num patamar civilizacional de referência, embora havendo trabalho a fazer no domínio da luta contra a corrupção, que é um cancro que precisará de muito maior mobilização política, não apenas em discursos retóricos, mas em medidas concretas, no dia-a-dia, de forma que o processo social se possa validar em termos de legitimação e de concorrência, no sentido em que as decisões são baseadas no mérito e não em nepotismo ou outro tipo de soluções que visam favorecer interesses muitas vezes ilegítimos.

Não vê essa mobilização num espectro político alargado?
Há um trabalho importante [a fazer], mas é hoje melhor do que era há uns anos.

A cinco, dez anos já estaremos numa escala de cooperação fiscal internacional muito superior à de hoje?
Não vale a pena estarmos a fazer movimentos súbitos que as estruturas e as sociedades não têm capacidade para as assimilar. O que é essencial é mobilizar as pessoas, fazendo ver a necessidade de determinadas medidas. A própria democracia está em questão quando temos gigantes tecnológicos a beneficiarem das infra-estruturas dos países, pagas pelos contribuintes, e os lucros não são sujeitos a tributação. Ninguém se pode apresentar a fruir sem contribuir na medida da sua capacidade contributiva. É dentro desta ordem de ideias que é fundamental aprofundar a cooperação fiscal.

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