Um programa de reinserção para ex-reclusos, uma inquilina despejada e uma carta aberta a Rui Moreira

Câmara do Porto aprovou projecto para reintegrar inquilinos que ficaram sem casa devido a penas de prisão. Na reunião de câmara, a discussão acendeu-se por causa de um despejo de uma reclusa. Uma carta aberta a Rui Moreira com quase 200 subscritores pede reversão do caso

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Moradora do bairro do Lagarteiro recebeu ordem de despejo a dois meses de sair em liberdade condicional Paulo Pimenta

A Câmara do Porto vai disponibilizar cinco habitações sociais por ano para abrigar ex-reclusos que tenham ficado sem casa por estarem a cumprir pena. O projecto Apoiar para (Re)inserir, em parceria com a Direcção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais e a Santa Casa da Misericórdia, vai agora ser negociado com o Ministério da Justiça, depois de a proposta ter sido aprovada unanimemente na reunião de câmara desta terça-feira.

Os aplausos da oposição não significaram, no entanto, navegação em mares calmos. A culpa foi de um artigo de opinião exposto nas páginas do PÚBLICO desta terça-feira, onde se relata o despejo de uma reclusa, e que deixou o vereador da Habitação, Fernando Paulo, à beira de um ataque de nervos. Por aquela altura, ainda não tinha chegado ao executivo de Rui Moreira uma “carta aberta”, já assinada por quase 200 pessoas, a pedir ao presidente da autarquia que “revogue esta ordem de despejo”. Mas nomes como José Mário Branco, Helena Roseta ou Alexandre Quintanilha são potencial para nervos ampliados.

A proposta de recomendação do executivo de Rui Moreira prevê a criação de uma “equipa multidisciplinar” para erguer um “plano individual de readaptação e ressocialização” de munícipes que, por estarem presos e passarem mais de dois anos sem aceder à habitação, tenham perdido a sua casa. A essas pessoas será disponibilizada uma habitação por um período de um ano e será aberta a possibilidade de se candidatarem à Domus Social, algo que o regulamento, aprovado recentemente, não permite.

A vereadora da CDU foi a primeira a pedir a palavra. Para Ilda Figueiredo a recomendação não seria necessária se o regulamento tivesse acautelado situações como aquelas. “A lei diz que ao fim de dois anos as pessoas podem ser despejadas, mas também diz que as câmaras municipais têm a possibilidade de produzirem um regulamento de acordo com cada município”, sublinhou. A “injustiça” criada pelas normas camarárias tem vítimas como Paula, disse, gente sujeita a “duas penas: a da justiça e a da câmara”. A vereadora, que propôs a criação de um observatório da habitação, fazia alusão ao caso descrito pelo assistente social José António Pinto no PÚBLICO e instalava a confusão.

Paula está presa desde Setembro de 2012. Com três filhos, todos menores à época, a moradora do bairro do Lagarteiro, em Campanhã, teve desde cedo direito a saídas precárias. Manuel Pizarro era vereador da Habitação e decidiu não privar a inquilina da sua casa, por entender que essa decisão causaria um afastamento dos filhos. É no Lagarteiro, de resto, que os filhos pernoitam todos os fins-de-semana para poderem fazer a visita semanal à mãe. “Cumpri escrupulosamente o regulamento. E do regulamento não resulta um modelo único de decisão. É verdade que diz que a não ocupação de uma casa por um período consecutivo de dois anos é motivo para despejo. Mas não diz ser obrigação de despejo. E acresce que há outras normas que apelam para considerações de natureza social em certas circunstâncias.”

O vereador socialista quebrava o silêncio a que se remeteu durante a reunião de câmara para responder via PÚBLICO ao desafio colocado por Fernando Paulo horas antes. O actual vereador da Habitação afirmara haver no artigo de opinião de José António Pinto um “conjunto de mentiras” e chamara o PS à discussão: “Desafiava o senhor vereador Manuel Pizarro a informar esta câmara se efectivamente o que lá vem é verdade, se ele deixou de cumprir com o regulamento de habitação social e se meteu na gaveta o processo. É que se meteu é crime, porque não participou qualquer acto processual.”

Pizarro não respondeu na reunião, mas comentou depois para afirmar que o artigo é “absolutamente factual” e enquanto vereador tinha escolhido não despejar Paula porque o regulamento assim o permite.

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Paulo Pimenta

A carta de despejo da inquilina foi assinada por Fernando Paulo a 22 de Dezembro e os bens da reclusa foram retirados da casa a 30 de Janeiro. A saída de Paula está por dias. “Tenho muita dificuldade em entender que a pessoa seja despejada quando está prestes a sair”, comentou Manuel Pizarro. O vereador de Rui Moreira argumentou não ter sido informado pelo estabelecimento prisional de que a cidadã iria ter liberdade condicional.

Rui Moreira jurou não conhecer o caso de Paula mas deixou um comentário geral ao tema: “Não sei qual a justiça de deixar uma casa vazia durante anos à espera de uma pessoa que não cumpriu perante a sociedade e, por isso, foi condenada, deixando que outras pessoas não tenham acesso a ela.” Esta quarta-feira, um dos filhos de Paula levará à Câmara do Porto uma carta com argumentos contrários. José Mário Branco, Vitorino, Alexandre Quintanilha, Helena Roseta, Alexandre Alves Costa, Fernanda Lapa, Luisa Pinto (encenadora que está a rodar um filme com reclusos onde Paula também entra), Manuela Matos Monteiro, Regina Guimarães, Manuel Loff, José Soeiro. Os nomes dos subscritores ocupam várias páginas (e a carta ainda está aberta) e deixa duras críticas a esta actuação. A “aplicação cega do regulamento gera uma grande desumanidade”, lê-se no documento a que o PÚBLICO teve acesso. “A Paula, é certo, cometeu um crime. Mas já pagou por ele. Cumpriu a pena a que a Justiça a condenou. Por que haveria de ter uma outra pena para além dessa – a perda da sua casa, que assim ficou e permanece vazia – , em vez de poder, justamente agora que está de regresso, voltar a sua casa e reconstruir a sua vida?”

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