Zerlina só podia existir depois da catástrofe

Pela primeira vez, Luísa Cruz dá voz a um monólogo e João Botelho surge como encenador. No CCB até 6 de Março, A Criada Zerlina mostra-se um texto violento e ao sabor de memórias negociadas entre a fantasia e a realidade.

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Nuno Ferreira Monteiro

Zerlina é uma criada. E, como sabemos, as criadas não costumam ter voz. Pelo menos uma voz que se oiça, soterrada que costuma ficar debaixo das ordens e dos mandos e desmandos dos seus senhores e das suas senhoras, resumida a uns sussurros caídos pelos cantos. Mas A Criada Zerlina, escrita em 1950 pelo autor austríaco Hermann Broch, reclama essa voz e não deixa, de resto, que mais nenhuma se interponha no seu discurso. De certa forma, ela expande a sua voz até se apropriar de todas as outras. Mesmo que para isso tenha de tornar a verdade um conceito lato – tão lato que possa até mesmo incluir a falsidade.

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As criadas não costumam ter uma voz que se oiça, soterrada que costuma ficar debaixo das ordens e dos mandos e desmandos dos seus senhores. Mas A Criada Zerlina, escrita em 1950 pelo austríaco Hermann Broch, reclama essa voz e não deixa, de resto, que mais nenhuma se interponha no seu discurso Nuno Ferreira Monteiro

Talvez por isso, devido a essa enfática declaração que faz no texto de que “era uma emoção verdadeira e, no entanto, era falsa”, devido a esse jogo constante a que Zerlina recorre enquanto se alonga a contar as suas memórias a um interlocutor quase ausente (denominado por A.), cede ao exagero e à distorção, aproxima essas memórias de como gostaria que tivessem mesmo acontecido, mas a partir de um lugar de narradora que não costuma ser oferecido a quem é permitido observar mas não opinar, testemunhar a vida mas não interferir, cuidar apenas do desalinho e compor tudo para que os outros vivam sem grumos. Talvez por isso A Criada Zerlina de Broch se tenha tornado uma figura tão magnética e tão propensa a saltar das páginas de um livro para os palcos do mundo.

Foi um acontecimento, aliás, quando, em 1988, Eunice Muñoz foi Zerlina numa encenação de João Perry – salto que Micaela Cardoso viria a repetir anos mais tarde. No caso desta A Criada Zerlina, que está em cena no Centro Cultural de Belém até 26 de Fevereiro, e de 3 a 6 de Março (segue-se, a 8 de Março, o Teatro Académico Gil Vicente, em Coimbra), é uma peça feita de primeiras vezes: o monólogo inaugural de Luísa Cruz, a estreia do cineasta João Botelho enquanto encenador. “Embora eu faça muito teatro nos meus filmes”, ressalva em conversa com o Ípsilon. Mas nada como aqui, em que enche os pulmões deste ar e mergulha com confesso entusiasmo na linguagem teatral. “O teatro”, compara Botelho, “não tem fim. O cinema parece que fechou um círculo – começou nas feiras e acabou nos centros comerciais. No teatro ninguém liga os telemóveis, ninguém come nem bebe; é mais nobre.” A nobreza que acredita andar desaparecida num cinema que, descrição do próprio, se deixou dominar por “uma ideia de aventuras infanto-juvenis”.

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É uma peça feita de primeiras vezes: o monólogo inaugural de Luísa Cruz, a estreia do cineasta João Botelho enquanto encenador Nuno Ferreira Monteiro

Botelho nunca tinha lido o texto de Broch; Luísa Cruz recorda-se de uma “leitura en passant, há muitos anos”, sem que tivesse estudado ou analisado estas palavras com pormenor. Nenhum dos dois viu as versões protagonizadas por Eunice Muñoz e por Micaela Cardoso; e a nenhum dos dois, na verdade, ocorreu pegar em Broch ou trabalhar uma parceria criativa. O desafio partiu de Luísa Taveira (administradora do CCB), tendo Luísa Cruz como destinatária; depois de ter aceitado uma proposta em branco, o CCB sugeriu ainda que fosse João Botelho a tomar as rédeas do espectáculo. E foi assim, escolhidos por terceiros, que actriz e realizador se voltaram a cruzar depois de uma curta referência biográfica que os unia nos seus percursos: ela teve uma pequena participação numa longa-metragem dele, Filme do Desassossego, em 2010.

Este texto que Hannah Arendt considerou “talvez a mais bela história de amor da literatura alemã”, foi escrito por Hermann Broch no contexto do pós-guerra e esse é um dado fundamental na opinião de João Botelho. “O facto de as mulheres terem trabalhado em fábricas durante a guerra enquanto os homens iam para o combate deu-lhes um poder e uma autonomia, começaram a ganhar dinheiro e a partir desse momento puderam tornar-se mais independentes”, afirma, sem esquecer o quanto a luta feminista do princípio do século ajudava a que essas conquistas se mostrassem mais sólidas.

“Só no pós-guerra é possível pegar numa criada, que em princípio não tinha voz, e dar-lhe uma”, continua. “Só depois de uma catástrofe é que se pode mudar as regras. As catástrofes são coisas boas, não são coisas más. Quando há um grande temporal ou qualquer outra situação em que as pessoas ficam em risco, isso pode mudar vidas. Tal como acredito que o teatro deve mudar vidas: quando as pessoas vêm para um espectáculo têm, depois, de fazer alguma coisa diferente – andar de patins, desenhar, cantar, dançar, fazer coisas diferentes do normal.” Essa tal voz rara, acrescenta por comparação com Zerlina, lembra-lhe a pintura de Courbet quando “ele tira os santos e os reis dos quadros e começa a pintar camponeses, começa a dar outra dignidade ao ser humano, independentemente da situação em que se encontra.”

É também a independência moral, amorosa e sexual que Zerlina chama a si no texto de Hermann Broch que seduz Luísa Cruz neste seu primeiro monólogo. É Luísa, tanto quanto Zerlina, que assume todas as outras vozes – a perspectiva sobre o mundo altera-se, deforma-se e ganha novos contornos aos seus olhos. Para a actriz, que em As Criadas, de Jean Genet (encenação de Marco Martins em 2016), fora a “Senhora” que as criadas sonhavam matar, em A Criada Zerlina, muito mais do que luta de classes, é a indagação sobre quem é esta mulher que conta. “Para mim é a pergunta de quem são estas pessoas e onde é que vivem. Porque é como se vivessem numa terra de ninguém – não são da família, mas são quase. Têm os afectos, vivem na mesma casa, mas não é a casa delas. Trabalham, vivem, interagem, muitas vezes transportam segredos, ouvem confissões, são padres, mães, pais, irmãs, psicólogas, são tudo isso numa criada.” Ao mesmo tempo que não podem pensar em criar a sua família, abrir a porta de uma casa que lhes pertença.

João Botelho recorda que, em Tráfico, punha na boca de um actor um pequeno texto de Maupassant em que se dizia algo como (a citação é inexacta, recolhida nos meandros da memória): “Um criado é um ser muito estranho: não é do povo porque o renegou, saiu de lá, mas por mais que queira também não é da burguesia de quem está a servir.” E lembra ainda os “maravilhosos filmes do Renoir, em que os criados observam e criticam com o olhar ou até com o sorriso”. “Aqui não, ela tem a palavra. Esta é a história de ele se apropriar da palavra.”

Cruel, vingativa e apaixonada

Ao viver nesta “terra de ninguém”, Zerlina tenta fazer brotar a sua identidade nos intervalos das vidas alheias. Luísa Cruz acredita que pode passar por aí a grande sedução do texto de Broch e é claramente aí que centra muita da sua energia em palco, enquanto alterna a primeira pessoa de Zerlina e as vozes terceiras escutadas pelos ouvidos de Zerlina, emergidas enquanto se desloca entre a frugal cenografia proposta por Pedro Cabrita Reis.

 O fascínio, diz a actriz, é tentar perceber o que sente esta pessoa a quem os afectos permitidos se reduzem aos seres humanos que a rodeiam. Vive, por isso, os amores que o dia-a-dia lhe pode trazer numa competição com a senhora baronesa – “ficava louca de fúria quando a senhora baronesa recebia cartas dele”, do homem a quem também entregara o seu corpo – ou com a restante criadagem. Chega, por isso, a cantar vitória sobre a baronesa, ao arrebatar – mesmo que momentaneamente – os afectos que eram destinados à sua senhora. “Mas será que ela acredita mesmo nisso?”, interroga-se Luísa Cruz. “Ou será que tem esse tipo de pensamento para se sentir viva, para se sentir alguém, para se sentir com alguma identidade?”

No entender da actriz, aliás, essas vitórias que Zerlina vai cantando sobre a sua senhora podem, afinal, não passar de pura fantasia, uma invenção para preencher as falhas numa realidade em que vive de empréstimo. Tanto que chega a confessar o quanto, no seu encontro sexual com o senhor de Juna, “a curiosidade dura e implacável pelo pavilhão de caça” a “excitava mais do que o próprio desejo”. Mas se Zerlina se gaba de saber tudo quanto se passa nas vidas à sua volta, desvalorizando a baronesa como uma alma vazia, a criada critica também o povo e faz correr boatos, disseminando inverdades que colocam tudo em atropelo e parecem ter origem na sua mais absoluta solidão, e numa necessidade desesperada de controlo – se não sobre a sua vida, entre sobre as vidas dos outros.

Botelho sente-se atraído por esta violência que o texto comporta. “Ela é uma observadora, mas cruel e vingativa, ao mesmo tempo que apaixonada. Tem os sentimentos humanos todos concentrados numa só personagem.” E para que a música de Béla Bartók e Arvo Pärt não insinue que esta criada Zerlina é apenas atirada para o conforto do passado, o encenador faz questão de terminar com alguma música electrónica. Para que o público não duvide de que é mesmo hoje que tudo isto está a acontecer.

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