A Maia do futuro pode estar numa fotografia lá de casa

Revisão do Plano Director Municipal inclui processo de participação da população que não se fica pelas habituais fases de discussão pública. Arquitecta paisagista desafia maiatos a criarem “comunidade proactiva” em defesa dos espaços rurais.

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A Maia ainda vive entre a ruralidade e o desenvolvimento urbano Inês Fernandes

Nos próximos meses, freguesia a freguesia, os maiatos vão ser convidados a partilhar as suas memórias dos lugares. Histórias e fotografias esquecidas nos velhos álbuns de família poderão inspirar algumas intervenções pontuais no território e, mais do que isso, influenciar o Plano Director Municipal (PDM), cujo processo de revisão, em curso, pede mais dos habitantes do concelho do que a habitual participação nos momentos de discussão pública previstos na lei. Convidada para o debate em que esta metodologia foi apresentada, a arquitecta paisagista Teresa Andresen desafiou os maiatos a criarem uma “comunidade proactiva”, que aproxime as áreas urbanas erguidas nas últimas décadas dos espaços rurais das antigas Terras da Maia.

Os PDM, como outros instrumentos de ordenamento do território, são documentos técnicos, extensos, e pouco dados a conversas de café. E nos processos de elaboração e revisão dos mesmos, que pressupõem a participação dos habitantes de cada concelho, há quem se guie pela carta dos serviços mínimos, dando voz ao povo nos momentos previstos na lei, e há quem vá mais longe, admite o docente e investigador do Departamento de Ciências Sociais, Políticas e do Território da Universidade de Aveiro, José Carlos Mota, que depois de uma experiência estimulante no Plano de Gestão do Parque das Serras do Porto, em que a participação das pessoas superou as expectativas, tem agora o desafio de ajudar a Maia a chamar a população para a revisão do PDM. 

O director do Mestrado em Planeamento Regional e Urbano recorda que, no parque das serras vizinhas, onde trabalhou com Teresa Andresen e os municípios de Valongo, Gondomar e Paredes, “a expectativa era de que as pessoas não aparecessem”, tendo em conta que até se tratava de um contexto de menor densidade urbana. “Mas a verdade” - recorda - “é que tivemos seis sessões com uma média de 80 pessoas, ao longo de três meses”. E nem sequer a estreia da selecção portuguesa no último Mundial de Futebol - isso sim, um grande tema para conversas de café, como sabemos - os deixou a falar sozinhos.

Partilhar as histórias dos lugares

E como será na Maia? “O PDM é o mais importante instrumento de planeamento ao serviço do ordenamento territorial do concelho, e sendo, deverá merecer o conhecimento, o mais aprofundado possível, por parte da população, desiderato que só se torna uma realidade pela criação de mecanismos - estimulantes e catalisadores - da participação cívica, participação essa que tem um objectivo duplo: levar os cidadãos a perceberem exactamente o que é esse “Plano” e a serem parte activa na sua revisão”, assume o vice-presidente da Câmara Mário Neves. O autarca espera mesmo que este processo “pioneiro”, para o qual o executivo chamou a equipa liderada por José Carlos Mota, faça “escola”.

Aliás, o autarca considera que os PDM, “sobretudo os PDM de nova geração, só são áridos na sua expressão formal que é, evidentemente, técnica”. Do ponto de vista da substância, insiste, e “tendo em conta as variadíssimas questões que tratam – questões relacionadas com os recursos físicos e naturais e questões relacionadas quer com o património cultural, na sua mais alargada extensão, quer com identidade e estratégia de desenvolvimento - são documentos que são tudo menos áridos, e é esta riqueza de conteúdos que pretendemos ver apreendida pela maioria da população”, acrescenta.

É aqui que entram José Carlos Mota, Isabella Rusconi, Janaina Telles e Gil Moreira, a equipa que tem a seu cargo o processo participativo, e que nos próximos meses vai percorrer as freguesias do concelho, chamando a população a partilhar lendas, as suas histórias e as suas fotografias dos lugares. O quarto concelho mais exportador do país já não é aquele município ainda vincadamente rural, com pouco mais de 50 mil habitantes, dos anos 60. Hoje tem mais de 135 mil habitantes vivendo num território onde cabe um aeroporto, a maior zona do industrial do país, e que é atravessado pela rede do metro e por uma malha viária que garante ligações a toda a região. Mas o processo de urbanização não destruiu o legado rural das antigas Terras da Maia - boa parte delas incorporadas nos concelhos vizinhos ao longo do século XIX - bem visível, por exemplo, a quem percorra o concelho de metro.

"Queremos saber mais sobre os lugares, mas sobretudo sobre a experiência dos lugares", adianta José Carlos Mota, explicando que, numa outra fase, no Outono, a equipa do PDM tenciona levar a cabo “intervenções de baixo custo” - o chamado urbanismo táctico - que ao longo de um dia, por exemplo, acrescentem algo a esses espaços, convidando por exemplo, artistas. O investigador acredita que a participação pode ser incrementada realizando por exemplo exposições com as fotografias que forem partilhadas, ou jantares comunitários para promover a conversa e o debate em torno dos lugares.

De efémeras, as acções que a equipa de Aveiro pretende promover - e que em dado momento beberão também da interacção com as escolas do concelho - poderão tornar-se duradouras. Isso acontecerá “sempre que a recuperação dessa memória contribua para a redescoberta de sentido e utilidade, para a comunidade alargada, de alguns espaços que o tempo, o modo e as circunstâncias, tornaram irrelevantes, ou esquecidos”, assume o vereador que tem a seu cargo a condução da revisão do PDM.

O desafio de Teresa Andresen

O processo começou com reuniões com o executivo e com as juntas de freguesia. Mas José Carlos Mota destaca desde já o envolvimento dos técnicos dos município que, seguindo esta lógica de escutar antes de propor, também foram convidados a dar conta dos aspectos positivos (destacaram, por exemplo, as acessibilidades e infra-estruturas) e negativos do concelho (deixaram queixas sobre a mobilidade urbana intra-concelhia e a dispersão e fragmentação urbana). Sobre o PDM, percebeu-se que esperam que ele possa ser um bom instrumento para a gestão municipal, capaz de ser compreendido pela população, incorporando, se possível, as questões de identidade.

Inês Fernandes
Inês Fernandes
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Inês Fernandes

A Maia mantém uma identidade rural e, mesmo do ponto de vista urbano, a marca ambiental seguida, por exemplo, ao nível dos parques verdes, e da gestão de resíduos, está bem vincada. Convidada para a sessão de apresentação do processo participativo da revisão do PDM, na primeira semana de Fevereiro, a arquitecta paisagista Teresa Andresen desafiou os presentes a incorporarem no plano uma visão que volte a dar centralidade aos espaços rurais do concelho, numa visão articulada com os novos desafios que se colocam ao desenvolvimento das cidades.

O desafio está em linha com as urgências de um planeta acossado pelas alterações climáticas e com um tempo em que nos é pedido que reflictamos sobre o nosso papel enquanto cidadãos e consumidores. “Por que é que eu, em Agosto, tenho de comer laranjas que viajam de avião, desde a África do Sul”, questiona a antiga professora da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto, antes de defender que, dada a fertilidade dos solos da Maia, seria possível reconverter parte destas terras para uma “agricultura mais sustentável”, capaz de fornecer os mercados locais de hortícolas e de frutas, “para que os produtos não andem a gastar gasolina”.

Feira de produtos locais na cidade?

“É possível construir uma comunidade proactiva, mais do que participativa, e fazer dos campos da Maia novas centralidades urbanas”, insiste Teresa Andresen, defendendo, inclusive, que o concelho tem todas as condições para criar uma marca biológica, à boleia do carácter empreendedor bem visível no número de empresas e na dimensão da sua área industrial. Na plateia daquele debate, o presidente da Cooperativa Agrícola da Maia, Américo Soares, não perdeu a oportunidade para lembrar que a diminuição do número de produtores de leite - que ainda é a fileira mais importante, neste território - tem levado muitos agricultores a diversificarem cultivos, abrindo espaço para hortícolas, pequenos frutos e o kiwi, que tem uma expressão forte nesta região litoral.

“Aqui não há terras abandonadas”, revela orgulhoso, ao PÚBLICO, Américo Soares, que descreve os agricultores maiatos como “os jardineiros do concelho”, sem os quais o território ficaria desordenado e feio. A actividade tem encontrado seguidores entre as gerações mais novas, mais abertas às mudanças preconizadas por Teresa Andresen, mas o presidente da cooperativa, que todos os anos organiza já com o município uma feira, a Hortíssima, lamenta que ainda não tenha sido possível encontrar um espaço para um mercado semanal de produtos locais. “Seria muito importante, uma forma de levar o campo ao coração da cidade”, insiste, desafiando a autarquia a encontrar uma solução.

Mário Neves considera que a identidade rural da Maia, que “continua, de forma exemplar, presente em muitos aspectos”, deve ser acarinhada, defendendo que se criem “condições mais favoráveis para que a actividade agrícola estabeleça laços mais estreitos com a universidade”. De resto, o autarca inclui esta proximidade ao mundo rural, e a paisagem verde presente no concelho, como parte da estratégia ambiental e para a descarbonização do concelho, que incluirá, obviamente, medidas noutras áreas, como a da mobilidade. Neste campo, o município promete “dar passos muito concretos, quer ao nível pedonal, ciclável e outros”, para dar força aos ditos “modos suaves”, minimizando a necessidade de recurso ao automóvel.

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