Crianças com cancro em Portugal: um "mundo" com falta de condições e respostas

No dia internacional da criança com cancro, a associação Acreditar alerta para as dificuldades que crianças e famílias continuam a ter de responder.

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MANUEL ROBERTO

Todos os anos há cerca de 400 novos casos de cancro pediátrico em Portugal. “São alterações profundas na vida das crianças e dos pais, que, em choque, entram num mundo onde tudo é estranho”, diz Margarida Cruz, directora-geral da Acreditar – Associação de Pais e Amigos de Crianças com Cancro. Nesta sexta-feira, dia internacional da criança com cancro, a associação alerta para as dificuldades que as crianças e famílias continuam a enfrentar. 

A directora destaca, desde logo, as “condições menos dignas” em que as crianças com doenças oncológicas continuam a ser tratadas – como acontece no Hospital São João, onde as crianças permanecem em contentores provisórios desde 2011 e cujas condições são veementemente criticadas entre os médicos. “As condições são muito precárias tanto para as crianças que estão internadas como para os pais que estão a acompanhar”, afirma.

Margarida Cruz critica também o tratamento das crianças fora do ambiente pediátrico, como é o caso do Instituto Português de Oncologia (IPO) de Lisboa, em que o serviço de pediatria termina quando a criança completa os 16 anos. “O IPO deve ter pediatria até aos 18, como está na legislação”, sublinha.

As falhas no atendimento médico persistem, mesmo após o período de tratamento da criança. Em Portugal, só existe o serviço de oncologia pediátrica em Lisboa, Coimbra e Porto. Contudo, só o IPO de Lisboa faz as designadas “consultas dos duros”, isto é, o acompanhamento regular de crianças sobreviventes de cancro. “O sobrevivente é dado como curado, mas pode ter determinadas sequelas provocadas pelos tratamentos, como é o caso da quimioterapia. É importante acompanhar estas sequelas e também ajudar a que os jovens tenham uma sobrevivência com maior qualidade de vida”, explica a directora-geral.

A associação Acreditar já partilhou esta preocupação com os serviços hospitalares de Coimbra e do Porto, que responderam “não ter condições para ter as consultas”. “É preciso analisar que isto pode não significar um custo excessivo para o sistema nacional de saúde porque o facto de eles prevenirem determinados tipos de riscos acaba por ser uma poupança para o serviço de saúde em vez de um gasto acrescido”, afirma.

Além da falta de acompanhamento médico, Margarida Cruz alerta que a percepção da sociedade relativamente aos sobreviventes de doenças oncológicas “tem de ser ainda muito trabalhada”. “São descriminados nas entrevistas de emprego, as empresas olham para eles como um risco, e quando querem comprar uma casa também não conseguem, porque precisam de um empréstimo e têm restrições fortíssimas para fazer, por exemplo, um seguro de vida”.

Não há dados nacionais

Os últimos dados nacionais de oncologia pediátrica são de 2009. Os registos a que a associação tem acesso resultam do “extraordinário esforço” dos centros oncológicos que fazem uma adição dos casos em cada um dos centros. Este cenário que, segundo a directora da associação, “está longe de ser solucionado”, pode prejudicar a investigação em oncologia pediátrica e faz com que “Portugal continue no fundo das tabelas de avaliações internacionais, porque embora tenha bons resultados, eles não são registados”. A solução passa, então, por contratar registadores em cada um dos três centros de oncologia pediátrica. “Os médicos, com falta de tempo, não conseguem fazer este trabalho. É essencial que existam registadores, que têm de ser pessoas que conhecem os termos médicos e que tenham algum know-how tecnológico”.

Burocracias e atrasos: desde o Governo até às escolas

A burocracia e a dispersão de medidas de apoio continuam a ser um problema gritante no processo de tratamento de crianças com cancro. “Quando os pais recebem a noticia de que o filho tem cancro, é um choque. E um dos cuidadores normalmente tem de deixar de trabalhar para acompanhar o filho e quando tenta obter apoios, tem de tratar de uma série de questões burocráticas que estão dispersas em vários diplomas, tem de se deslocar a imensas repartições e tem muita dificuldade para perceber quais são os seus direitos”.

Margarida considera também urgente implementar a actual intenção do Governo de alargar o prazo da baixa atribuída aos pais para seis anos, mais dois que a norma actual. “Há muitos, muitos casos de crianças que têm tratamentos contínuos que vão além dos quatro anos. E, no fim deste período, os pais perdem o direito a qualquer prestação e ficam desempregados”. Acabado o prazo, as crianças perdem também vários apoios, nomeadamente ao nível dos transportes. “Elas continuam a ter de ir a consultas mas não podem ir de transportes públicos porque têm um sistema imunitário debilitado”.

Relativamente ao cenário escolar, a Associação de Pais e Amigos de Crianças com Cancro diz que o problema já não recai na legislação, mas sim no atraso das respostas por parte das escolas. “Quando as crianças estão doentes e não podem ir à escola, podem pedir apoio formal ao domicílio, mas há casos em que as escolas respondem passado três meses, quando já passou quase um período escolar”, explica Margarida Cruz. Para a associação, é imperativo que sejam dadas instruções gerais para que as escolas respondam com maior rapidez.

No dia internacional da criança com cancro, a associação Acreditar critica ainda “as graves dificuldades no acompanhamento” de todas as crianças e jovens que são tratados em Portugal ao abrigo de acordos de cooperação com os Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa. As crianças têm direito a tratamentos gratuitos, mas as famílias ficam desamparadas. “Nós acolhemos gratuitamente as famílias, mas muitas vezes precisamos de lhes dar apoio monetário para irem comprar comida”, exemplifica Margarida. “Estas questões têm de começar a ser calculadas nos protocolos”, acrescenta. Por enquanto, a associação vai fazendo os possíveis. “Vamos alargar a nossa casa de acolhimento de Lisboa. Tinha capacidade para 12 famílias e agora passará a albergar 32. Mas a preocupação de tratar as pessoas com dignidade tem de começar a ser geral”. 

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