De uma assentada, Trump declara emergência nacional e faz estremecer a Constituição

Medida tem como objectivo juntar verbas para a construção de um muro na fronteira com o México e vai ser contestada nos tribunais, numa batalha que poderá demorar meses ou anos.

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Donald Trump: "O nosso país está a ser invadido por drogas, traficantes de seres humanos e todo o tipo de criminosos" JIM LO SCALZO/EPA

O Presidente norte-americano, Donald Trump, declarou esta sexta-feira o estado de emergência nacional na fronteira entre os EUA e o México, para conseguir lançar a construção do muro anti-imigração que prometeu durante a sua campanha eleitoral. Mas esta declaração pode não ser suficiente: ao longo dos próximos meses ou anos, o Partido Democrata e várias organizações da sociedade civil vão contestar a decisão de Trump nos tribunais, numa batalha que pode vir a alterar a divisão de poderes na democracia norte-americana.

É verdade que foram declaradas várias dezenas de emergências nacionais nos EUA desde 1976 – o ano em que o Congresso aprovou uma lei para definir melhor este poder dos Presidentes norte-americanos. Mas esta é a primeira vez que um Presidente declara uma emergência nacional para levar adiante uma promessa de campanha, e contra uma proibição expressa do Congresso – é isso que estará em causa nos tribunais, já que a Constituição norte-americana diz que é o Congresso que decide a distribuição das verbas do Orçamento norte-americano.

Na quinta-feira, o Partido Democrata e o Partido Republicano chegaram a acordo nas duas câmaras do Congresso para libertarem os orçamentos de várias agências e departamentos públicos (entre os quais o Departamento de Segurança Interna), o que evitou uma nova paralisação parcial.

Nenhuma das partes – principalmente o Presidente Trump – tinha interesse em hostilizar ainda mais os 800 mil funcionários públicos que ficaram sem salário durante 35 dias entre Dezembro e Janeiro, precisamente porque os partidos não chegaram a acordo à primeira tentativa.

Mas ao aceitar pôr a sua assinatura no acordo de quinta-feira, o Presidente Trump foi também forçado a reconhecer que perdera o braço-de-ferro com o Partido Democrata: apesar de ter desbloqueado os orçamentos, o Congresso não aceitou dar mais 5,7 mil milhões de dólares (cinco mil milhões de euros) ao Departamento de Segurança Interna para a construção do muro, como Trump exigia.

Dessa forma, o muro só poderia ser construído se o Presidente encontrasse verbas sozinho, usando o seu poder executivo.

Uma pequena soma poderia ser reunida através de decretos presidenciais, que estão dentro dos seus poderes. Mas para juntar 5,7 mil milhões de dólares, ou mais, só declarando um estado de emergência nacional na fronteira. Segundo a Casa Branca, Trump poderá agora redireccionar oito mil milhões de dólares (sete mil milhões de euros), do Departamento do Tesouro e do Pentágono, para a construção do muro – algo que o Congresso proibiu expressamente no acordo aprovado quinta-feira.

Há 31 declarações de emergência em vigor nos EUA, e a mais antiga foi declarada em 1979 por causa da crise dos reféns norte-americanos no Irão. A maioria diz respeito aos atentados terroristas de 11 de Setembro de 2001 e à aplicação de sanções e congelamento de bens de traficantes, terroristas ou líderes políticos e empresários estrangeiros.

Precedente perigoso

O que se segue é uma batalha nos tribunais, que poderá demorar meses ou anos e impedir que Trump possa mostrar o muro aos seus apoiantes até ao fim do mandato, em Janeiro de 2021. Mas os ganhos políticos são importantes: ao declarar a emergência nacional, Trump poderá dizer aos eleitores, na campanha para a sua reeleição, que está a fazer todos os possíveis para construir o muro.

Mas há uma questão mais importante para a democracia norte-americana do que a construção de um muro na fronteira com o México, ou a luta política entre o Partido Democrata e o Partido Republicano.

Segundo vários especialistas, se os tribunais vierem a dar razão ao Presidente Trump, futuros Presidentes eleitos pelo Partido Democrata podem aproveitar este precedente para declararem emergências nacionais questões como as alterações climáticas, os tiroteios em escolas ou o acesso aos cuidados de saúde – para cumprirem promessas de campanha mesmo que não tenham o apoio do Congresso.

"Usar os poderes de emergência nacional para permitir que o Presidente contorne o Congresso, para construir um muro que os nossos representantes eleitos decidiram não financiar, é uma ameaça institucional real à separação de poderes", disse ao New York Times William C. Banks, professor de Direito na Universidade de Syracuse e especialista em tensões entre os poderes executivo e legislativo.

"Estabelece o precedente de que um Presidente pode usar essa ferramenta para escapar ao normal processo democrático, sem que esteja em causa uma verdadeira emergência, para financiar os seus próprios projectos", disse Banks.

E foi isso mesmo que disseram alguns senadores do Partido Republicano, como Rand Paul, Susan Collins ou Patrick Toomey.

"Eu também quero reforçar a segurança na fronteira, incluindo com um muro em algumas zonas. Mas a forma como fazemos as coisas é importante", disse o senador Rand Paul no Twitter. "Mais de mil páginas enviadas a meio da noite e acções executivas extra constitucionais são um erro, seja qual for o partido que o faça."

Mas a questão é ainda mais complexa. Para outros especialistas, é possível que os tribunais não aceitem sequer intrometer-se nesta questão, cumprindo a tradição de não se substituírem aos Presidentes na avaliação do que é uma emergência nacional.

E para anular a declaração do Presidente Trump antes da chegada aos tribunais, a Câmara dos Representantes e o Senado teriam de aprovar uma lei por largas maiorias, para contornarem um provável veto presidencial. No Senado seriam precisos 61 votos em 100, e na Câmara dos Representantes seriam precisos 290 votos em 435 – o que só seria possível se muitos republicanos quisessem enfrentar o Presidente Trump.

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