Quão inteligentes queremos ser?

A Huawei convidou um compositor a completar com o auxílio da inteligência artificial a Sinfonia Inacabada de Schubert. Uma operação de marketing de que não resultou qualquer benefício para a história da música.

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No passado dia 4 de Fevereiro, a Huawei convocou imprensa (e não só) de toda a Europa para assistir, em Londres, a uma operação de marketing a que deu o título de Unfinished Symphony. O PÚBLICO esteve presente, convidado pela Huawei Portugal para um concerto em que seria apresentada uma versão da Sinfonia nº 8 em Si menor (1822), de Franz Schubert (1797-1828) – conhecida como Sinfonia Inacabada – completada com o auxílio de inteligência artificial.

"A Huawei juntou, pela primeira vez, o poder da Inteligência Artificial com a perícia humana, para compor os dois últimos movimentos da famosa Sinfonia nº 8 de Schubert" (sic). Nesta frase de um comunicado pós-concerto, o leitor menos distraído não deixa de perceber que a música é o menor dos detalhes — para começar porque, em português, usamos habitualmente a expressão “andamento” para designar aquilo a que, em língua inglesa, nos referimos como “movement” (o lapso assemelha-se a referirmo-nos ao maestro como “o condutor”).

Precisamente porque a música era o menos importante, a "internacionalmente reconhecida Philarmonia Orchestra" anunciada era, afinal, a algo obscura London Session Orchestra, tal como o maestro Duncan Ward era, afinal, Julien Galant – assim se explica a ausência de referências no sítio electrónico da orquestra e do espaço que, esse sim, era o previsto: Cadogan Hall. Mas era logo à chegada a essa "sensacional" sala de espectáculos que se percebia que ninguém ali estava para assistir a um concerto. O ambiente introdutório a uma sinfonia de Schubert dispensaria contextos sonoros que remetem para drum'n'bass... Mas já chegaremos ao concerto.

Esta operação contemplava a possibilidade de entrevistas aos representantes da Huawei e ao compositor incumbido de concluir a partitura (porque a inteligência artificial não faz tudo sozinha!). Foi constrangedor receber como resposta desse mesmo compositor "o que é isso?" à pergunta "o que é que esta tecnologia vem trazer que a composição assistida por computador dos anos 90 não permitisse já fazer?" Percebe-se, então, que Lucas Cantor — a que Walter Ji, um dos executivos da Huawei, se refere como um dos mais famosos compositores do mundo — foi cuidadosamente escolhido por não demonstrar capacidade para colocar questões de fundo acerca da tarefa para a qual fora desafiado. E mais claro isso se torna quando é referido que todo o projecto foi desenvolvido em apenas seis meses e que a primeira nota dos andamentos elaborados por Lucas Cantor (terceiro e quarto) só foi escrita um mês antes da estreia.

Muito ficou por explicar, uma vez que o referido comunicado fala também de análise de timbre, tons e métricas mas, questionado sobre a forma como realizou a orquestração, Lucas Cantor afirma ter trabalhado apenas com "melodias que Schubert poderia ter escrito, mas não escreveu" – fornecidas pelo Huawei Mate20 Pro, como resultado de uma aprendizagem da gramática de compositor vienense – e ter recorrido ainda (imagine-se!) à ajuda de um orquestrador.

Já no auditório, ambientados entre copos e o comovente discurso de uma apresentadora que (sobre um fundo de vigorosa batida) se congratula pelo facto de a Huawei permitir levar a música “clássica” a uma audiência mais vasta, somos conduzidos aos discursos dos representantes da Huawei e do compositor, até que, finalmente, se revela uma interpretação muito decente dos dois primeiros andamentos da lavra de Schubert (pela tal London Session Orchestra) e uma não menos decente execução de uma partitura que nos remete para Hollywood, em que reconhecemos singelas variações de temas do primeiro andamento – variações ao alcance da pena menos afiada de um qualquer aluno de conservatório. Para completar o ambiente de festa, luzes que variam de intensidade e que oscilam entre o branco e o vermelho empreendem um discurso rítmico sem relação de espécie alguma com a música escutada, enfatizando o nonsense de toda aquela manifestação desadequada.

É capaz de ser verdade que foi a primeira vez que um telemóvel se viu como fornecedor de matéria-prima para a composição de uma xaropada – se bem que, nas mãos certas, i.e., com a adequada “perícia humana”, já o primeiro Nokia 3310 permitia obter resultados mais interessantes do que a música de Lucas Cantor –mas, antes de perguntarmos o que pode a Huawei lucrar com tão forçada operação de marketing, questionemo-nos sobre a quem serve a criação de uma partitura retrógrada, sem valor artístico aparente, que não cumpre sequer o propósito utilitário de uma boa banda-sonora.

De resto, sejamos francos: é altamente desonesto partir da música de um compositor de génio que viveu em condições tão precárias como pretexto para uma operação de marketing, que não terá envolvido menos do que uma quantia escandalosa, sobretudo sem sequer se atingir um resultado musical que não seja tão claramente humilhante. Mas relativizemos: no fundo, não era de música que se tratava!

O PÚBLICO viajou a convite da Huawei Portugal

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