"Nunca me senti tão feliz a dizer 'vou para o manicómio'"

Um espaço de coworking no Beato, artistas com doenças mentais, esculturas de monstros, desenhos que cobrem por completo páginas em branco, histórias de vulcões. Uma luta de mais de 20 anos pela conquista da dignidade, pelo reconhecimento da autenticidade. E, agora, um investimento de 100 mil euros. Isto não é terapia, é arte, é trabalho. Bem-vindos ao Manicómio.

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A luz do sol entra, inclinada, e ilumina as mesas de trabalho do espaço de coworking Now (No Office Work), no Beato, em Lisboa. Numa delas, à esquerda, está Anabela a trabalhar um pedaço de barro. À sua frente, resultado da concentração em que passou as últimas horas, começou a nascer uma escultura feita de cabeças de monstros que parecem lutar entre elas por um espaço para nos desafiarem. Cobras enrolam-se nos monstros e outros seres mais pequenos nascem do barro, como se se libertassem de algo. Tudo junto, parece um grito. E é.

Anabela Soares sofre de uma doença mental vinda de há muito, de uma infância de sofrimento que, mesmo passados 50 anos, não se apaga nunca e a domina, por vezes em forma de raiva, a maior parte em forma de dor que não a abandona. Aproximamo-nos dela para saber como correu este primeiro dia no Manicómio, o projecto criado por Sandro Resende e José Azevedo, a partir de vários anos de trabalho no Hospital Júlio de Matos com pessoas “com experiência de doença mental” — a expressão que preferem utilizar.

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O sucesso do que foram desenvolvendo no Júlio de Matos, que passou por várias exposições em que a arte criada pelos artistas com doença mental se cruzou com a de nomes consagrados, nacionais e internacionais (de Pedro Cabrita Reis a Jorge Molder, de Jeff Koons a Emir Kusturica), conduziu-os até este projecto do Manicómio, que acabam de lançar e que deverá ter inauguração oficial antes do final de Fevereiro.

A ideia é tirar os doentes dos pavilhões hospitalares e integrá-los num espaço de coworking com pessoas que fazem as mais variadas coisas, com plantas, uma cafetaria com comida saudável, um cão, revistas, mesas de madeira, uma bonita vista, e os raios de sol que entram.

Anabela não podia estar mais feliz. Assim que metemos conversa, não pára de falar. Passou os últimos meses em casa ajudando o companheiro que esteve doente e o não poder trabalhar no barro foi uma tortura. Por isso, o que sente hoje é um alívio enorme. Sentia-se a sufocar por não conseguir pôr os seus monstros cá fora. E não demora nada a começar a falar da infância duríssima, dos maus tratos, do ter crescido acreditando que ninguém gostava dela e nunca ninguém gostaria.

À nossa volta, pessoas trabalham, concentradas, olhando os ecrãs dos computadores. Algumas juntam-se na sala de reuniões. Da cafetaria chega um cheiro bom a café e bolos. E, no meio disto, em cima da mesa de Anabela, os monstros. “Quando olho para eles cá fora, vejo-me a mim. Isto sou eu. Em todas as peças. Não há uma que não seja eu.”

Os monstros “não saem todos de uma vez”

Desde 2014 que, encorajada pelo Sandro e pelo Zé, começou a trabalhar o barro, depois de ter feito alguns bonecos em pano, um dos quais um urso gigante representando os peluches que nunca teve quando era criança. “Não sabia que conseguia trabalhar o barro, nem tão-pouco fazer estas figuras. Mas é no barro que me exprimo, que ponho tudo cá para fora.” Os monstros “não saem todos de uma vez”. “Isso queria eu”, desabafa. É por isso que, quando está muito tempo parada, eles voltam a acumular-se no peito, alimentados por essa dor e essa raiva que a sufocam. Quando finalmente saem, “é um alívio, uma libertação”.

Sandro está sentado do outro lado da sala. Conhece Anabela há muitos anos, conhece as suas histórias e tem acompanhado a forma como ela foi ganhando corpo como artista. É, aliás, o trabalho dela que mostra no primeiro livro editado pelo projecto Manicómio – chama-se apenas Anabela e das suas páginas, sobre fundo preto, saltam os monstros.

Anabela é um dos dez artistas que irão trabalhar neste Manicómio no Beato. “Este projecto”, explica Sandro, “é uma coisa que eu e o Zé queríamos fazer há muitos anos, porque continua a haver um grande estigma em relação aos muros do [hospital psiquiátrico] Júlio de Matos.” “Achámos que estava na altura de lançarmos um projecto com um maior grau de dignificação dos doentes e, apelando àquela honestidade, àquela autenticidade que eles têm, criar um espaço que seja também autêntico para eles.”

Aqui têm uma mesa de trabalho e material adaptado ao que cada um faz. Podem vir todos os dias ou escolher um horário em função das necessidades pessoais, têm direito a almoçar na cafetaria, podem conviver com os outros utilizadores do espaço Now, podem dar workshops a quem estiver interessado em aprender e têm ainda o apoio de um psicólogo, caso seja necessário.

Anabela Soares diz que as figuras monstruosas que cria são os “seus meninos”.

Trata-se de um investimento de perto de 100 mil euros, que tem o Turismo de Portugal como o maior patrocinador, mas envolve também a Central de Cervejas, a Fidelidade, a Herdade da Malhadinha Nova, com a qual o Manicómio fez um vinho cujo rótulo é desenhado pela Anabela, entre outros parceiros. 

“Estes artistas têm um ordenado para trabalhar, refeições e transportes”, orgulha-se Sandro. “E têm a cabeça livre, porque não precisam de se preocupar com a questão financeira. No Júlio de Matos, muitos não podiam ir, porque não tinham dinheiro para o passe, perdia-se a ligação artística ao trabalho que já tínhamos conseguido, outros não tinham dinheiro para comer, eram questões que eu via acontecer no dia-a-dia e que me preocupavam.”

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Sandro Resende Vera Moutinho

Da segunda vez que visitamos o espaço Now, além da Anabela está também Pedro Ventura, máquina fotográfica na mão, sorriso satisfeito. “Isto é uma mudança muito grande na minha vida. Estou numa associação para idosos e jovens com deficiência — no meu caso é doença mental. Continuo a ir lá, mas passei a vir dois dias para aqui para o Manicómio e, mesmo para a minha saúde mental, isto é totalmente diferente, não tem nada que ver.”

Daí a pouco está a fotografar Anabela a trabalhar. Depois, parte, com a máquina, para explorar os outros andares. “Faz-me bem”, diz, “é uma terapia óptima. Quando começo a fotografar, esqueço-me que estou a fotografar. O que sinto é prazer.” Foi diagnosticado com esquizofrenia paranóide, mas a medicação está a fazer-lhe bem e há pelo menos três meses que não ouve vozes. Vir para o Beato é, para Pedro, uma aventura, mas não se queixa do tempo que demora. “É um prazer”, repete. “Dá um sentido à vida.”

Para além da fotografia e do vídeo, que começou a fazer mais recentemente por sugestão do Zé (um dos seus trabalhos em vídeo, sobre o tempo que demora a sair de casa, esteve recentemente na exposição Insubordinar no espaço Fidelidade Chiado8, juntamente com trabalhos de Anabela e de Francisco Gromicho), Pedro também escreve, sempre de auscultadores nos ouvidos, para poder mergulhar no seu universo próprio.

“Estive três anos internado no Júlio de Matos, escrevi pouca coisa nessa altura. Comecei um livro, que já saiu”, conta. “Mas o Zé gosta é do que eu estou agora a fazer, microcontos, numa folha A4. Ele diz ‘Vai em frente’ e se ele diz é porque é. Às vezes escrevo um completo, outras, escrevo um bocadinho, deixo amadurecer a ideia e retomo. Hoje estou a retomar um que já tinha começado há algum tempo.”

Na exposição no Chiado, esteve exposto um destes microcontos, O amor dos vivos, uma história que começa assim: “No princípio, apenas existia a luz. Depois as pedras. Os vulcões surgiram mais tarde; os gases tóxicos que estes expeliam formaram a primeira atmosfera — o que tornou o céu avermelhado. No interior do vulcão nasceu o primeiro casal.”

“Isto não é terapêutico”

Sandro Resende não considera que o que faz há 20 anos no Júlio de Matos e agora aqui no Manicómio seja terapia, apesar de os artistas garantirem que os ajuda a sentirem-se melhor. “Isso é uma coisa que nunca me preocupou”, garante o mentor do projecto. “Nunca vi uma ficha clínica, interessa-me a pessoa e o que ela quer. Não há aqui qualquer paternalismo.” Isso significa, por outro lado, exigência. “Se queres ser um artista, vamos lá, vamos trabalhar para isso. Têm de ser pragmáticos, trabalhar muito e só expõem um trabalho que está em condições. Há trabalhos que dão exposições, outros não.”

Pedro Ventura dedica-se à escrita, mas também à fotografia.

Tanto Sandro como Zé vão ajudando, dando sugestões, criticando ou elogiando os trabalhos. Quando sentem que o artista está a encontrar o seu próprio caminho, começam a desaparecer, tornando-se menos interventivos. Mas, insiste, “isto não é terapêutico, é uma profissão como outra qualquer”.

Na terceira visita que fazemos ao Manicómio encontramos outra artista que aqui agora passa grande parte dos seus dias. Cláudia R. Sampaio é poeta e desenhadora. Apesar de ter estado internada no Júlio de Matos, não conhecia o projecto do Sandro e do Zé. Foi depois de ter saído do hospital e de ter começado a pintar que, numa pesquisa sobre galerias onde pudesse mostrar o seu trabalho, encontrou uma entrevista ao Sandro e enviou-lhe uma mensagem. Ele disse-lhe que gostava de ver os desenhos. “Enfiei-os numa pasta, fui ter com ele e com o Zé, eles falaram-me deste sítio e perguntaram se eu queria ser artista residente.”

Em cima da mesa de Cláudia está uma folha de papel já quase totalmente preenchida com uma das suas pinturas em que as formas ondulam, expandem-se e enrolam-se umas nas outras, ocupando cada espaço livre. Foi um estilo que começou a desenvolver e que, entre outras coisas, lhe tem permitido sobreviver depois de ter deixado de trabalhar como guionista de séries de televisão.

“Em Janeiro fez dois anos que voltei a desenhar. Foi num internamento no hospital, pedi à minha mãe para me levar um caderno e umas canetas, porque ali cada dia era um ano e eu precisava de escrever”, conta. “Depois surgiu uma vontade de me expressar de outra maneira — com a medicação é mais complicado organizar as ideias e achei que desenhar era uma coisa mais livre.” Um dia colou um papel na parede, fez “umas manchas à toa” e nelas começou “a ver formas de pássaro”. Foi pintando e o estilo foi surgindo.

Cláudia Sampaio redescobriu o desenho durante um internamento psiquiátrico.

Mas se até agora tudo era muito mais difícil, mesmo com os desenhos a venderem-se bem, as condições que aqui tem para trabalhar mudam muita coisa na vida de Cláudia. “Nunca me senti tão feliz a dizer a frase ‘Vou para o manicómio’”.

Loucos à vontade​

Cláudia não conhecia nem Anabela nem Pedro, mas nestas duas semanas em que começou a frequentar o espaço tem vindo a descobrir o trabalho deles. “Conheço-os há pouco tempo, mas é como se os conhecesse, porque já estive muitas vezes com pessoas assim no hospital. As esculturas da Anabela inspiram-me, às vezes vou lá só olhar para elas e volto, isso é óptimo.”

Sandro acredita que este projecto tem a possibilidade de ser replicado noutras zonas do país. Está a despertar grande interesse e já recebeu “mais de 100 propostas” de pessoas interessadas. “Há uns tempos fiz uma pesquisa de tudo o que existia no país, não só em hospitais, e conheci artistas fantásticos – o que me leva a pensar levar isto para outros sítios, como o Alentejo, onde há um vazio muito grande. Acho que poderia ser o próximo passo.”

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Para já, e ainda ligado a este primeiro núcleo, há a ideia de abrir um restaurante — vai chamar-se Inconveniente por Manicómio — mas ainda procuram um local. Certo é que será uma colaboração com a Tia Cátia, cozinheira que se tornou famosa pelo seu programa no 24 Kitchen.

Apesar de o investimento inicial prever a sobrevivência do projecto durante quatro anos sem venda de produto, Sandro espera que os trabalhos dos artistas residentes comecem a encontrar compradores interessados. “Estamos agora a conseguir que o mercado já compre coisas deles como artistas e não como arte bruta. Ainda agora na exposição [no Chiado] vendemos duas peças a preços normais de arte.”

E os doentes sentem-se confortáveis com o nome dado ao projecto? “Percebem que é um bocadinho irónico e gostam disso”, garante Sandro. “Em termos de marca é fantástico. Quando os artistas estão no manicómio, não existe grande pressão social. Podem ser loucos à vontade. Podem fazer o que quiserem e desenhar o que quiserem. É uma liberdade total.”

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O nome faz todo o sentido, concorda Cláudia. “Muita gente lá fora não assume e devia estar no manicómio. Pelo menos aqui é assumido que somos pessoas com uma sensibilidade espectacular. Os grandes artistas da História tinham todos uma sensibilidade diferente. Manicómio é um bom nome para um grupo de artistas.”

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