O regresso do anti-semitismo

Ao que parece, o movimento dos coletes amarelos em França tem contribuído para a disseminação de posições xenófobas e racistas.

Alain Lamassoure, uma das mais prestigiadas figuras do centro-direita francês, liberal e profundamente europeísta, despediu-se esta semana do Parlamento Europeu, onde permaneceu mais de duas décadas, com um discurso especialmente oportuno e tocante. A dado passo, afirmou: “Graças a vós, caros colegas, eu aprendi que a escuta, o diálogo, o respeito mútuo, a procura do compromisso, a obsessão pelo interesse comum são bem mais eficazes do que o afrontamento sistemático que caracteriza demasiadas vezes os nossos debates nacionais. Muitos dos nossos parlamentos nacionais, assim como um prestigiado capitólio que se situa do outro lado do Atlântico, teriam algumas lições a aprender aqui.” Nestas poucas palavras estão contidos alguns dos princípios fundamentais que inspiram e orientam as aspirações de uma civilização humanista, liberal e democrática. Desde logo a confiança na prevalência de uma Razão dialógica, condição imprescindível para que o confronto argumentativo se não feche à possibilidade do compromisso e para que a busca do interesse comum não esteja condenada a perecer diante da mera procura de satisfações circunstanciais, sejam estas de natureza individual ou corporativa. Lamassoure fez bem em criticar aquela que é uma tendência cada vez mais nítida de polarização excessiva dos debates políticos nacionais. O crescimento dos extremismos, por definição fanáticos, mentalmente infantilizados e absolutamente intolerantes, constitui sem dúvida o maior problema dos tempos que atravessamos.

Ontem mesmo foram divulgados dados impressionantes acerca do aumento do número de actos violentos de natureza anti-semita praticados em vários países europeus no último ano. Esse aumento foi particularmente arrepiante em França. O anti-semitismo, esse velho e tenebroso demónio de uma certa cultura europeia, parece estar de volta. É verdade que ele nunca desapareceu inteiramente. Nos últimos anos, a sociedade francesa conheceu mesmo um novo tipo de anti-semitismo, oriundo das correntes fundamentalistas islâmicas, anti-semitismo esse que beneficiou de certa complacência por parte de uma extrema-esquerda radicalmente anti-israelita e muito desconfiada da burguesia judaica. O que agora parece estar de regresso é o anti-semitismo de uma extrema-direita declaradamente antiliberal, anticosmopolita e antiuniversalista.

Têm razão aqueles que dizem que os populismos emergentes no espaço europeu mais não são do que reaparições de velhas correntes nacionalistas. Convirá não confundir esses nacionalismos irracionalistas e organicistas com o conceito de Estado--nação próprio de uma tradição democrática moderna e que está, ademais, indissoluvelmente ligado nos seus fundamentos históricos à própria Revolução Francesa.

Ao que parece, o movimento dos coletes amarelos em França tem contribuído para a disseminação de posições xenófobas e racistas e para a vulgarização de um discurso de recorte protofascista. Os efeitos da globalização e a mediocridade do crescimento económico verificado nos últimos anos naquele país estão longe de explicar este fenómeno. Ele terá com certeza raízes económicas, mas tem também importantíssimas causas culturais e políticas. Tenho insistido na tese, mas creio firmemente que a derrocada intelectual e política das correntes de pensamento mais moderadas, num contexto de infantilização da discussão pública, abre as portas para o triunfo de posições brutais e infames que não nos são, de resto, historicamente desconhecidas.

É neste ambiente, a vários títulos ameaçador, que se vão disputar as próximas eleições europeias. Seria bom que os candidatos dos partidos que continuam a representar, à esquerda e à direita, as posições mais moderadas, isto é, mais confiantes nos méritos da já mencionada Razão dialógica, e como tal mais propensas ao respeito para com o adversário e à procura do compromisso, não perdessem de vista a enorme responsabilidade de que estão investidos. Precisamos de um debate sério e profundo, que fuja à tentação da discussão do episódico, do conjuntural e do mediaticamente superficial. Dispensa--se também uma discussão de índole meramente tecnoburocrática que no nosso país, aliás, tende a transformar-se rapidamente numa discussão de mercearia sobre fundos comunitários. Não é que este tema não seja importante, mas está longe de ser uma das questões decisivas no debate de que a Europa carece.

O anti-semitismo, sendo tenebroso em si mesmo, tem sido sempre o sinal de uma profunda crise de civilização. É por isso que o seu recente crescimento no continente europeu não pode ser ignorado ou sequer desvalorizado. Ele traz as marcas de uma extrema-direita que nunca o abandonou e de uma extrema-esquerda dada a confundir anti-sionismo com anti-semitismo. Não nos iludamos a esse respeito. Os extremismos, sejam de direita ou de esquerda, trazem consigo perversões ignóbeis que tiveram ampla manifestação nos totalitarismos do século XX. Pouco a pouco fomo-nos esquecendo desses tempos. Nalguns casos fomos mesmo aceitando acriticamente processos de branqueamento dessas funestas doutrinas que tanto mal fizeram à humanidade. Milan Kundera falava da importância da luta da memória contra o esquecimento. Poucas vezes essa luta foi tão determinante como na hora presente.

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