Gustavo Carona viaja ao verdadeiro centro do mundo

Retalhos da vida de um médico. Gustavo, 37 anos, viajante por um mapa-mundo com carências humanitárias extremas: Moçambique, República Democrática do Congo, Paquistão, Afeganistão, Síria, República Centro-Africana e Iraque. “Não posso salvar o mundo, mas posso ser feliz a tentar.”

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A introdução desta história conta que o bodyboard era a vida do jovem Gustavo e que uma pancada seca e estrondosa com a cabeça e com o ombro numa pedra coberta de ouriços o desviou do seu sonho. Despediu-se do amor da sua vida, chorou todos os dias durante seis meses e reaprendeu a viver, dedicando-se à Medicina. “Se dependesse de mim, mais ninguém ia sofrer o que eu sofri.” O resto desta história são retalhos da vida de um médico sem fronteiras. “Foi amor à primeira vista! Não posso salvar o mundo, mas posso ser feliz a tentar”, escreve Gustavo Carona no livro O Mundo Precisa de Saber, cheio de pontos no mapa e de pessoas reais com carências humanitárias extremas: Moçambique, República Democrática do Congo, Paquistão, Afeganistão, Síria, República Centro-Africana e Iraque.

"Tudo começou” na sua primeira viagem como turista em África. “Já era médico, tinha 26 ou 27 anos”, conta à Fugas Gustavo, que ainda hoje gosta de viajar para além das missões ("Não cresci rico; custou-me muito fazer as minhas primeiras viagens"). Foi em Moçambique. “Aquela realidade bateu-me muito forte. Todos nós sabemos que existe, mas é diferente quando somos confrontados com ela, quando temos a coragem de querer ver. Fiz por ter a coragem de ver as coisas como elas são. Foi aí que ganhei vontade de exercer a minha profissão onde ela me parece fazer ainda mais sentido”, conta aos 37 anos, sentado numa esplanada junto ao mar.

Gustavo dedica-se a missões humanitárias desde 2009. Tem ficha no Hospital Pedro Hispano (fala de uma “carreira relativamente normal, mas com muitas interrupções"), onde conseguiu uma licença sem vencimento que lhe permite andar há sensivelmente dois anos entre missões. “Às vezes saio de lá quase morto, em modo burnout. Principalmente pela responsabilidade pelas vidas que me passam pelas mãos”, sublinha o médico anestesista e intensivista (especialidades “desejadas” neste tipo de cenários), que gosta de sublinhar o “profissionalismo” de organizações (que já representou) como os Médicos Sem Fronteiras (MSF), o Comité Internacional da Cruz Vermelha e os Médicos do Mundo. “São máquinas estruturadas e com muitos profissionais”, destaca, apontando uma espécie de “endeusamento da palavra voluntariado”, que, na sua opinião, “só funciona de vez quando ou em termos de proximidade”.

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Para salvar vidas em contexto de conflito ou em contexto de catástrofe humanitária extrema é preciso uma grande máquina. Um médico com as mãos no ar não faz a diferença. Quando as pessoas dizem ‘ah, eu dinheiro não dou, eu posso dar um pacote de arroz’ isso não é sério, isso só prova uma grande ignorância. É preciso conhecer as organizações e as suas motivações. Há muito mais seriedade do que aquilo que as pessoas pensam. É triste que as pessoas coloquem tantas dúvidas sobre organizações que fazem um trabalho muito sério. Acidentes há, extravios existem, erros estratégicos também, mas é preciso que se perceba que sem dinheiro não se faz nada, que sem pessoas muito competentes, muito experimentadas não se faz nada. O voluntariado não chega.

Gustavo, que também gosta muito de falar de viagens, da beleza do país e da sua história, diz que nunca escolheu os países para onde foi. “Eles é que me escolheram a mim.” Primeira missão: República Democrática do Congo. Nos primeiros voos para África, confessa, “sentia que ia apanhar um foguetão para a Lua”. “Para a maioria das pessoas estes locais são inexistentes. Senti que estava no centro do mundo pela intensidade do que se estava a passar à minha volta. E eu não sabia nada daquilo até lá ir parar. E senti-me um bocadinho envergonhado. Já era um rapazinho bem informado, com olhos para o mundo. ‘Como é que não se fala disto? Como é que ninguém sabe? Como é que o nosso foco de atenção não é proporcional aos acontecimentos? Saí de lá com o peso dessa responsabilidade: falar em nome das pessoas que me passaram pelas mãos.”

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É isso que procura fazer com o livro O Mundo Precisa de Saber (EGO Editora). “É muito frio dizer que já morreram cinco ou seis milhões de pessoas. É muito frio dizer que 70% das mulheres já foram vítimas de violência sexual. São números que nos distanciam. Através das histórias de pessoas deixo mensagens de algumas destas realidades, histórias clínicas, a minha visão.”

Sem pretensões de ser “analista político”, Gustavo Carona fica com a sensação de que sabe mais por experiência própria do que muitos especialistas. “É impossível conhecer um país como o Afeganistão sem lá estar. Há pessoas que falam na televisão e que nunca puseram lá os pés.” E ele gosta de falar do Afeganistão, das pessoas “incríveis, bondosas, hospitaleiras, inspiradoras e resilientes”. “Só pensamos em guerra, sangue, explosões, guerra e terroristas. Pensamos que aquele país, que aquele povo, é isso. E eu tento que as pessoas vejam para além disso. Muitas das minhas histórias são tristes. Porque a realidade tem tristeza q.b. Mas tento deixar alguma mensagem de optimismo, de esperança e de beleza.” "Levantar e aterrar em Cabul é incrível", exclama. “É uma cidade hipnotizante e bela, com um património histórico que nos envergonha e que nos faz viajar no tempo até ao infinito.”

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Depois, os MSF apontaram-lhe a direcção da Síria. “Eu achei que já não era possível ter mais medo, mas era”, escreve. Foi “a experiência mais intensa”. Grupos armados a controlar a fronteira, quilómetros de aldeias vazias, abandonadas e bombardeadas, algumas pessoas meio perdidas. "É uma dor de alma", resume Gustavo, que fez o percurso inverso ao de muitos refugiados, “a fazerem o luto de uma vida e o luto de famílias inteiras”. Trabalhou “numa zona muito quente, perto da linha da frente”. Sentiu muito “a guerra na primeira pessoa”. E sentiu que as pessoas, “encurraladas entre o seu querido ditador, que não hesitava em bombardeá-las, e o Estado Islâmico, este movimento que ninguém sabia muito bem o que era na altura e que era altamente repressor, controlador, castrador, que lhes causava um terror, um pavor imenso”, estavam a lutar pela democracia e pela liberdade. “Sentir o hospital a abanar com os bombardeamentos e saber que éramos um potencial alvo... nunca me tinha acontecido.”

“Tu pensas: se eles cá estão, se eles aguentam e sobrevivem, se eles querem proteger os seus e se há tantas vidas para serem salvas, eu também tenho que conseguir, eles merecem o meu esforço. Viver com esta inspiração às costas não tem preço, não há nada que o substitua”, confessa. Neste contexto, tratar feridos acaba por ser uma pequena expressão do seu trabalho. “As pessoas ficam sem nada, sem vacinas para as crianças, sem antibióticos, sem sítio para fazer uma cesariana. É a ausência total de cuidados de saúde. Sentimos medo, mas as nossas motivações, aquilo que nos aquece a alma, supera o medo. Sentimos que aquilo é o centro do mundo, que aquilo é que deveria ser o centro das atenções.

As viagens de Gustavo Carona permitem-lhe sobretudo "viver em verdade", “ser autêntico” e “seguir em conformidade”. “Fazem-me a pergunta ‘então, correu tudo bem?’ E eu não sei o que responder. Correu tudo bem é o quê? Vi não sei quantas pessoas a morrer, vi um sofrimento atroz, vi mais uma vez que o mundo se esquece, vi que nós somos uns hipócritas que vendem armas para outros se andarem a matar?”

Deixa uma sugestão de exercício: “Se eu um dia escrever um livro da minha vida, o que é que eu gostava que lá estivesse? É ter um BMW? É ter um apartamento de luxo junto à praia? Ou quero escrever que ajudei pessoas, que fiz o que estava ao meu alcance para que a felicidade global aumentasse? Às vezes esquecemo-nos o quão efémeros são alguns prazeres.”

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