Francisca Van Dunem: "Já posso indicar quem cuidará de mim se um dia vier a precisar"

O Regime do Maior Acompanhado permite que qualquer pessoa, na posse das suas faculdades mentais, indique quem a acampanhará caso venha a precisar.

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Enric Vives Rubio

A partir desta segunda-feira, quem foi declarado incapaz de gerir a sua vida e os seus bens (interdito) ou apenas os seus bens (inabilitado) poderá pedir uma revisão do seu caso. Todos os que têm processos pendentes nos tribunais passam a estar abrangidos pelo novo Regime do Maior Acompanhado.

A ideia central desta reforma é trocar duas figuras legais rígidas (total interdição ou inabilitação) que estão em vigor desse 1966 por um regime flexível, ajustado às necessidades de cada pessoa em concreto (Maior Acompanhado). Doravante, o acompanhamento dos adultos que – por doença, deficiência ou comportamento – estão impossibilitados de exercer os seus direitos e de cumprir os seus deveres deve limitar-se apenas ao indispensável.

“Isto é uma reforma civilizacional”, declara, ao PÚBLICO, a ministra da Justiça, Francisca Van Dunem. “Vivemos num país de idosos. A população está cada vez mais envelhecida. Somos o quarto país da OCDE [Organização para a Cooperação e para o Desenvolvimento Económico] com mais demências por cada cem mil habitantes. Temos de ter instrumentos para que as pessoas incapacitadas possam exercer os seus direitos no limite das capacidades que têm.”

As estatísticas judiciais reflectem a mudança que o país está a viver. Há um crescimento constante de acções findas nos tribunais de 1.ª instância: 559 processos de interdição em 1996; 1080 em 2006; 3136 em 2016 – 4033 em 2017. O mesmo se passa com as inabilitações, que saltaram de 15 em 1996 para 43 em 2006 e para 259 em 2016 – 304 em 2017. O desfecho nem sempre é o pretendido por quem intenta a acção. Veja-se o exemplo de 2017, o ano mais recente disponível, foram declaradas pelo menos 3102 interdições e 228 inabilitações.

Às vezes, as famílias não se entendem quanto aos cuidados a prestar a um idoso. Outras vezes, ninguém quer assumir tais responsabilidades. Nos lares, há cada vez mais pessoas que entraram conscientes e se tornaram dementes. Os motivos para pedir o regime podem, porém, ser menos dramáticos.

No último ano, multiplicaram os alertas de corrida aos tribunais com acções desta natureza por motivos burocráticos. A Pensão Social para a Inclusão é paga por transferência bancária ou cheque só depositável na conta do beneficiário. E havia técnicos da Segurança Social a aconselhar famílias a ir ao tribunal pedir que a pessoa com deficiência fosse declarada incapaz de reger o seu património para que o familiar pudesse receber em nome delas.

Campanha em todo o país

O passa-palavra já começou há meses. “O que estamos a fazer é falar em todos os fóruns possíveis para que as pessoas percebam o que muda”, salienta a ministra. A tutela preparou panfletos e outros materiais para distribuir pelo país. “Iremos disponibilizar isto em conservatórias e tribunais e depois iremos articular com a Segurança Social para disponibilizar também nos seus serviços.”

A grande mudança é a salvaguarda do respeito pela vontade das pessoas que precisam de apoio. “Estou muito satisfeita com esta mudança. Agora, posso indicar quem cuidará de mim se um dia vier a precisar”, comenta Van Dunem.

A partir de segunda-feira, qualquer pessoa, mesmo que não tenha doença, deficiência ou problema comportamental, “pode, prevenindo uma eventual necessidade de acompanhamento”, fazer uma espécie de declaração de vontade. O documento, a que se dá o nome de "mandato”, assume a forma de contrato e tem de ser registado no cartório notarial. O interessado pode indicar qualquer pessoa que se encontre no pleno exercício dos seus direitos. Se quiser, até pode apontar vários acompanhantes com diferentes funções, especificando os papéis de cada um terá em caso de necessidade.

A própria pessoa que se sente diminuída nas suas capacidades pode requerer acompanhamento. Mediante a sua autorização, também podem tomar essa iniciativa o cônjuge, o unido de facto, qualquer parente sucessível e, independentemente de qualquer autorização, o Ministério Público.

O tribunal pode aproveitar o referido “mandato”, mas também poderá anulá-la, se entender que essa é a vontade da pessoa no momento em que o caso é apreciado. Terá sempre de contactá-la pessoalmente. Pode deslocar-se aonde ela estiver para verificar que capacidades ainda podem ser aproveitadas.

No parecer que deu à Assembleia da República, o Mecanismo Nacional de Monitorização da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência manifestou preocupação com a “capacidade judicial de resposta em tempo útil aos processos interpostos e à revisão periódica das medidas de acompanhamento”.

Na velha lei, não se previa qualquer revisão. Na nova, nenhuma decisão é definitiva. A sentença pode ser revista em qualquer altura. A revisão pode ser pedida pelo próprio, pelo acompanhante ou pelo Ministério Público. Por lei, pelo menos de cinco em cinco anos o caso tem de ser reapreciado pelo tribunal.

 “A expectativa que eu tenho é que este processo seja mais ágil, agora que se tornou mais simples, que não se colocam muitas das dificuldades que se colocavam e em que o juiz tem uma grande margem ao nível da decisão e ao nível das medidas de acompanhamento a decretar”, diz a ministra da Justiça. “Estou convencida de que essas situações serão resolvidas com alguma celeridade.”

Vê a preparação a acontecer. “O Centro de Estudos Judiciários fez formação a magistrados judiciais e do Ministério Público. Tudo na expectativa de que seja mais fácil absorver o novo sistema”, afirma. Houve sessões em diversas partes do país, organizadas por faculdades de direito das universidades de Lisboa e Porto, pela Alzheimer Portugal e outras entidades. “Eu própria participei na abertura de acções formativa dessa natureza”, afiança. “Há um grande interesse público nesta matéria, que diz respeito a todos.”

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