A tabela periódica em dois actos

O Bairro da Tabela Periódica é o título (ainda provisório) da peça de teatro da autoria de João Monte, professor de química e bioquímica na Faculdade de Ciências da Universidade do Porto. O estilo? “Ciência em ficção”, com humor

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O professor de química Manuel João Monte Adriano Miranda

Um bairro, 118 elementos (dois femininos), seis cenas em dois actos. O professor de química da Faculdade de Ciência da Universidade do Porto Manuel João Monte inventou uma história que quer ser uma peça de teatro divertida sobre a tabela periódica. O projecto, patrocinado pela Sociedade Portuguesa de Química, deverá ser levado a cena ainda este ano, para integrar o vasto programa de comemoração do Ano Internacional da Tabela Periódica, apresentada em 1869 por Dmitri Mendeleiev.

São seis cenas encaixadas em dois actos para contar as peripécias de um grupo de residentes num bairro, dividido por blocos. A acção passa-se sobretudo em reuniões de condomínio onde se discutem vários temas, entre os quais estão, por exemplo, as questões de género. “Já reparou que, na língua portuguesa, há apenas dois elementos da tabela periódica que se conjugam no feminino? Prata e platina.”

Até há bem pouco tempo, o professor de química nunca tinha ainda parado para pensar no assunto. Não sabemos se estaria apenas a olhar ou se estaria mesmo a admirar a tabela periódica quando percebeu que quase tudo que existe ali é para conjugar no masculino. A investigadora com quem partilha o gabinete tinha resposta pronta para a constatação: feminino, só a prata e a platina.

Eis o mote para brincar com a questão de género. Manuel João Monte soube depois pela mulher que, em russo, há apenas cinco nomes femininos na tabela. E, acrescenta, em francês a regra gramatical é ter todos os elementos no masculino (um pretexto para uma nova brincadeira, desta vez, com os coletes amarelos).

Assim, “nesta peça, os elementos químicos aparecem humanizados e residem n’ O Bairro da Tabela Periódica, constituído por quatro blocos (que existem cientificamente)”. A tabela pensada por Dmitri Mendeleiev está hoje dividida em quatro blocos e, por isso, também o bairro pensado por Manuel João Monte. Há várias referências, muitas delas ligadas a temas com que somos confrontados actualmente. Há, por exemplo, o sótão dos blocos do bairro reservado aos elementos químicos com um tempo de vida muito curto (alguns duram apenas uns milésimos de segundo e são fortemente radioactivos), que os moradores do bairro querem transformar em alojamento local. Por outro lado, também se discute a importância socioeconómica dos elementos químicos. “Aqui será um bocado mais sério, com umas brincadeiras pelo meio, e uma tentativa de promover o bom nome da química, que em muitos sítios continua a ser usado num sentido pejorativo, como ‘ah, eu não compro isso porque tem químicos.’” Aproveita-se a oportunidade para “alguma publicidade sobre a química, enquanto ciência central que tem a ver com tudo”.

A versão escrita ainda não é definitiva mas na primeira cena vamos ouvir uma das falas da personagem Prata a discutir o “ponto número um” da reunião de condóminos do bairro. Prata dirá algo como isto: “Caros condóminos: Talvez por sermos os dois únicos elementos químicos com nomes femininos, recebemos de representantes de um bloco fora deste bairro (risos dos outros condóminos), uma carta onde se protesta contra o facto de em 118 elementos químicos apenas dois serem femininos - a Platina e eu própria. A missiva que nos foi enviada diz o seguinte. “Caras elementas e caros elementos do bairro da Tabela Periódica: Perante a brutal discriminação de elementos femininos que se verifica no vosso bairro, apelamos a que, pelo menos, metade dos 118 elementos passe a ser no feminino”.

A inspiração e o vício do estilo "ciência em ficção"

É com uma evidente humildade e também com um inegável tom de satisfação que Manuel João Monte fala desta sua faceta de autor. Além das aulas e investigação, o professor de química da Faculdade de Ciência da Universidade do Porto gasta uma parte significativa do seu tempo com divulgação científica. Como, aliás, qualquer bom professor universitário deve fazer.

Assim, depois de ter feito duas traduções de peças escritas pelo químico Carl Djerassi (Oxigénio em 2006 e Falácia em 2011, as duas levadas a cena pela companhia de teatro Seiva Trupe), Manuel João Monte tinha pensado em escrever um livro sobre o Laboratório Ferreira da Silva, na Universidade do Porto. “Só que depois tive esta ideia sobre a tabela e, atendendo à efeméride dos 150 anos, dei prioridade a isto”, lembra.

O trabalho - será mesmo trabalho? - faz-se sobretudo ao fim-de-semana e a peça - já se disse - está quase pronta. “Tenho escrito ao correr da pena, mas falta uma revisão final.” Há já também uma companhia de teatro interessada em levar a peça a cena ainda este ano. “Prefiro não avançar nomes por enquanto, porque ainda estamos em negociações.” Ao que tudo indica, a obra, que foi aparecendo a par do trabalho de investigação na área da termodinâmica, será publicada pela editora da Universidade do Porto. Assim, ao mesmo tempo que se divertia com a confusão que inventou no bairro da tabela, o investigador submetia um artigo para publicação numa revista científica sobre as propriedades termodinâmicas de contaminantes de um composto com cheiro (e gosto) a mofo no vinho.

Voltamos à peça de teatro. O estilo, conta Manuel João Monte, exibe um pouco de inspiração em Carl Djerassi (1923-2015) , autor das peças que traduziu e que é mundialmente famoso por ser considerado um dos “pais” da pílula contraceptiva (ainda que o próprio não gostasse desse título). Manuel João Monte era um admirador e amigo do químico norte-americano e foi o seu “padrinho” na atribuição do doutoramento honoris causa a Carl Djerassi pela Universidade do Porto, em 2011.

“Apanhei um pequeno vício daquele estilo que ele chamava ‘ciência em ficção’, que é um bocado diferente da ficção científica, e de ver o papel cultural do teatro como ideal para levar a ciência ao grande público”, diz o químico português, que avisa que não ousa fazer comparações com o “mestre”. É uma peça de teatro dirigida a toda a gente, ao chamado “grande público”, mas o professor de química sublinha que gostaria muito de ver alunos das escolas na audiência. “O fundo é sério, é científico, a exploração é que é ficcional e tem algum grau de comicidade e de leveza. Mesmo uma clientela científica pode apreciar as piadas porque não estou a cometer nenhuma gaffe ou dizer algo de errado. O que é ficção nota-se que é ficção, o que é sério nota-se que é sério. Tem também um papel pedagógico.”

Ridículo ou não, eis a discussão

De novo, a voz de Prata: “E que tal a Antimónia em vez de Antimónio? Alguma coisa contra? E o Magnésio? Tem que continuar ser masculino? Como é sabido, o óxido de magnésio é também conhecido por leite de magnésia. Não deveria então ser, a Magnésia? E poderia propor outras trocas: Em vez de Lutécio não poderia ser Lutécia? Lembro que Lutetia (com t em vez de c), é a antiga designação romana da cidade de Paris. E o Ruténio, que deriva da palavra latina Ruthenia que designa Rússia? Não poderia chamar-se Ruténia? E o elemento 105, o Dúbnio, nomeado em homenagem à cidade Russa de Dubna? Porque não a Dúbnia? Qual é a objeção?!” É o Chumbo que responde: “Eu continuo a ter muitas!”

Por sugestão de quem sabe da arte, o professor e autor decidiu contrariar o marcado lado narrativo do teatro português e temperou-o com uma dose de conflito ou, melhor dizendo, vários pequenos conflitos. “É isso que atrai as pessoas e as desperta”, foi o conselho do seu amigo encenador. Logo na primeira cena, a Prata e Chumbo discutem. “Esta questão de igualdade de género estendida aos nomes dos elementos químicos é, em minha opinião, ridícula. Repito, ri-dí-cu-la!”, reage o “senhor” Chumbo. Platina responderá: “Ridícula foi a censura exercida durante anos, mesmo em pleno século XX, à participação das mulheres na ciência e ao devido reconhecimento do mérito do seu trabalho. A descoberta da fissão nuclear por Lisa Meitner valeu-lhe a atribuição de um nome derivado do seu apelido ao elemento 109. E foi então nomeado Meitnéria? Não, claro! Ficou Meitnério! Faz algum sentido? Ridículo, Sr. Chumbo, é que a Tabela Periódica contemple apenas dois nomes femininos para designar elementos químicos”.

A peça vai durar cerca de 1h30. “Reservo para o fim a mensagem sobre a importância do papel da Química. Vou tentar fazer uma coisa bonita sem ser muito piegas.” Usando uma expressão querida de João Monte e que até chegou a pensar em usar no título desta peça, fica então a promessa de que teremos brevemente em cena num palco do Porto “mosquitos por cordas” (para quem não sabe, é o mesmo que balbúrdia ou confusão) no bairro da tabela.

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