Greve dos enfermeiros: Quo vadis?

Se as pretensões dos enfermeiros são justas, não menos justo é o direito dos pacientes à vida e aos cuidados. É isto que os enfermeiros não percebem: não vale a pena lutarem por si mesmos se prejudicam a sua relação com os que também têm direitos.

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Adriano Miranda

Há muito que não entrevíamos tal unanimidade de apoio ao Governo como a que pudemos constar aquando da aprovação da requisição civil dos enfermeiros, o que vem mostrar que o que move os profissionais não é de plena concordância entre os cidadãos. E isto é o busílis da questão porque são estes últimos que configuram o objecto de intervenção da enfermagem.

O que não invalida a justiça das pretensões dos enfermeiros. Estes constituem o pilar do sistema de saúde. Pouca coisa funciona sem eles. Pouco faz sentido sem o seu aval. E este precisa do reconhecimento das pessoas. Os enfermeiros sentem-se órfãos, sofreram humilhações consecutivas e isso dinamiza-os enquanto dissidentes. Pouco tenho a contestar quanto a esta luta. É bem verdade que o modelo da enfermagem é irredutível ao médico, que o enfermeiro é um artífice da salvação de um ser que tem de incluir o paciente como membro decisor.

O enfermeiro está, actualmente, em estado de orfandade e isto é mau para todos. Porque, se as pretensões dos enfermeiros são justas, não menos justo é o direito dos pacientes à vida e aos cuidados. E o estado de arte mental da enfermagem é de mote a tornar órfãos os próprios utentes. É isto que os enfermeiros não percebem: não vale a pena lutarem por si mesmos se prejudicam a sua relação com os que também têm direitos. Porque, nesta luta, deve estar em jogo menos a saúde do enfermeiro do que a saúde do paciente. Mas o ego dos enfermeiros, justificadamente ferido, está a pôr em perigo a continuidade de um sistema já de si imperfeito.

Este tipo de orgulho é a grande enfermidade dos serviços, ele subsiste irmãmente entre médicos, técnicos de diagnóstico e terapêutica, etc. Todos tentam superar-se, talvez até mais no poder do que nos atributos que deveriam trazer o prestígio. Poucos tentam conquistar o respeito, afirmando a qualidade ínsita do seu modelo, muitos persistem em sub-rogar-se a direitos que crêem ser prévios. Mas, se cedermos em todas as reivindicações, não é o direito dos profissionais que irá perseverar, mas sim o direito dos pacientes, pelo menos dos mais endinheirados, movidos pelo quadro dos resultados. E, curiosamente, ninguém quer ceder a este espírito liberal, que é o que vitaliza muitos privados, onde, no entanto, se ganha menos e se trabalha em condições de precariedade.

E tudo poderia melhorar se os enfermeiros não acusassem mais olhos de ambição do que barriga de merecimento. Peçam, sim, mas sejam razoáveis. Querem este mundo e o outro! Mas não existem só os enfermeiros, existem muitos outros egos, outras liberdades.

E é do ego dos enfermeiros que vem uma fonte importante de preocupação. Este tem acusado a intenção de atropelar tudo e todos, os outros profissionais de saúde incluídos. A bastonária dos enfermeiros, encarada como uma "messias" da enfermagem, figura bem a sua classe. Extravasando certa legitimidade, modera os sindicatos e armadilha as oportunidades de outros agentes. Em jeito de curiosidade, recentemente, opôs-se à consecução de uma Ordem dos Fisioterapeutas; quando os fisioterapeutas exprimiram o seu desagrado na página oficial da Ordem dos Enfermeiros, centenas de comentários foram apagados e os que comentaram viram o seu acesso à página bloqueado.

Não admira que os enfermeiros sejam tão mal-amados, não se trata só da ignorância dos cidadãos, trata-se também da ignorância dos profissionais. Que, em consequência, não se prestigiam junto dos que pretendem servir. Ora, a requisição civil em causa pode, entretanto, constituir um mal. Perante o azedume dos enfermeiros, quem é que deseja ser injectado por estas consciências? Sim, bem sei que, agora, os enfermeiros se armam em mártires. Merecerão, também, os cidadãos ser mártires?

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