Governo aprova requisição civil de enfermeiros

Conselho de Ministros aprova medida para fazer face à greve dos enfermeiros, depois de vários responsáveis hospitalares terem dito que os serviços mínimos não estavam a ser cumpridos. Requisição tem efeitos imediatos.

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PÚBLICO

O Conselho de Ministros aprovou nesta quinta-feira uma resolução que reconhece a necessidade de requisição civil dos enfermeiros face à greve em blocos operatórios, anunciou o Governo. A portaria será publicada ainda esta quinta-feira e tem efeitos imediatos. Requisição civil vai funcionar no Centro Hospitalar Universitário de São João, Centro Hospitalar Universitário do Porto, Centro Hospitalar Tondela-Viseu e Centro Hospitalar de Entre Douro e Vouga.

"Tendo-se verificado o incumprimento da obrigação de prestação de serviços mínimos, o Governo decidiu proceder à requisição civil, de forma proporcional e na medida do necessário, de modo a assegurar a satisfação de necessidades sociais impreteríveis no sector da saúde", refere o comunicado do Conselho de Ministros avançado pela Lusa.

Em conferência de imprensa, a ministra da Saúde explicou que a decisão acontece depois de o Governo ter tomado conhecimento que os serviços mínimos não estavam a ser cumpridos em alguns hospitais. O ministério aguarda ainda resposta a um pedido de parecer complementar feito ao Conselho Consultivo da Procuradoria Geral da República (PGR).

"Face àquilo que é do conhecimento do Governo, de doentes cujas cirurgias foram canceladas nos últimos dias estando as mesmas abrangidas no âmbito dos serviços mínimos, face à gravidade desses adiamentos, não podia o Conselho de Ministros tomar outra opção independentemente da data em que venha a conhecer o parecer da PGR", afirmou Marta Temido, explicando que a requisição civil e o pedido de parecer à PGR são independentes. "O objecto do pedido de parecer complementar não é sobre a utilização à requisição civil. É sobre quatro dimensões maioritariamente relacionadas com a licitude ou ilicitude do actual exercício da greve."

Fonte do gabinete da ministra da Saúde adiantou ao PÚBLICO que "foram identificados até ao momento casos de incumprimento em quatro unidades hospitalares: Centro Hospitalar Universitário de São João, Centro Hospitalar Universitário do Porto, Centro Hospitalar Tondela-Viseu e Centro Hospitalar de Entre Douro e Vouga". São estas para já as unidades que serão abrangidas pela requisição civil.

"O direito à greve será condicionado apenas na medida do estritamente necessário para preservar o direito à protecção da saúde, um direito fundamental que assiste a todos os utentes do SNS [Serviço Nacional de Saúde]", acrescentou a mesma fonte.

O gabinete da ministra já tinha feito saber no final do mês que pretendia que o Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República analisasse não apenas “o exercício do direito à greve”, mas também “a licitude do financiamento colaborativo” (uma plataforma de crowdfunding) que tem sustentado esta forma de luta.

Greve "desequilibrada"

Os dirigentes dos dois sindicatos que convocaram esta segunda "greve cirúrgica” temiam este desfecho: depois de vários responsáveis hospitalares terem afirmado esta semana que havia serviços mínimos que não estavam a ser cumpridos (nomeadamente nos centros hospitalares do Porto e no de Tondela-Viseu), estavam criadas as condições para que o Governo avançasse com esta medida extrema, a requisição civil.

Nesta segunda fase de greve nos blocos operatórios de sete unidades hospitalares, os serviços mínimos foram alargados, tornando difícil o seu cumprimento, segundo os dirigentes sindicais que já anunciaram que vão apresentar uma queixa à Procuradoria-Geral da República pela tentativa de "boicote" do protesto.

Na conferência de imprensa desta quinta-feira, Marta Temido voltou a afirmar que "a posição do Governo que é de respeito pelo direito à greve" e deixou um apelo aos enfermeiros "para que compreendam que a forma pela qual estão a exercer [o direito à greve] pode ser excessivamente gravosa e desequilibrada".

"Esta opção do Governo não é uma opção que tenha sido tomada de ânimo leve. Temos um conjunto de casos que correspondem a um conjunto de pessoas, que têm um rosto, um problema de saúde, que estavam abrangidos pelos serviços mínimos e que não foram respeitados. Independentemente da animosidade ou da forma que — esperamos que não aconteça — possa ser lida junto de alguns profissionais de saúde, estamos em crer que não tínhamos outra opção face àquilo que nos incumbe salvaguardar, que é o direito à saúde."

Um desrespeito, diz sindicato

Numa primeira reacção à decisão do Governo, a Associação Sindical Portuguesa dos Enfermeiros (ASPE) alerta para o risco de surgirem formas de luta "mais incontroláveis" que não sejam suportadas por sindicatos. "Mas estou de consciência tranquila. Avisei a senhora ministra da Saúde sobre esse risco", diz a presidente Lúcia Leite à Lusa.

"Não acredito que os enfermeiros, depois de verem como os governantes os desrespeitam, vão ficar serenos com esta decisão", declara, indicando que o sindicato ainda vai analisar o alcance da requisição civil "antes de tomar decisões". Para a sindicalista a fundamentação para a requisição civil "está ferida de verdade" por se basear num incumprimento dos serviços mínimos que "não aconteceu".

Lúcia Leite considera que "o incumprimento dos serviços mínimos é falso" e que o Governo usou estratégias para "ficcionar factos".

Já o Sindicato Democrático dos Enfermeiros de Portugal (Sindepor) afirmou-se surpreendido por o Governo decretar requisição civil na greve cirúrgica dos enfermeiros, argumentando que essa figura não se justifica quando os serviços mínimos são cumpridos.

"Estamos surpreendidos porque não conseguimos entender qual a razão para esta requisição civil", disse à agência Lusa o dirigente sindical Carlos Ramalho lembrando que houve pareceres de "alguns consagrados professores de direito" que concluíram que "não era possível uma requisição civil quando os serviços mínimos estão assegurados, e é isso que tem acontecido".

Carlos Ramalho acusa o Governo de conduzir "um processo político de manipulação da opinião pública, anunciando que as cirurgias não estavam a ser feitas" e garante que os enfermeiros podem provar que "isso é falso".

"Acompanhámos os piquetes de greve e sabemos que muitos dos tempos operatórios não foram devidamente utilizados e sempre estivemos disponíveis para negociar com os conselhos de administração a abertura de mais salas operatórias sempre que as situações o justificassem", declarou. O sindicato vai contactar o seu advogado para "reagir juridicamente".

Efeitos imediatos

Prevista na legislação portuguesa desde 1974, a requisição civil só pode ser usada para fazer face a situações de emergência ou quando está em causa o cumprimento de serviços de interesse público essenciais. Em 1976, o Governo, então chefiado por Mário Soares, aprovou na reunião de Conselho de Ministros de 16 de Março uma requisição civil por causa de uma greve dos enfermeiros. Tal como agora, também aquela teve efeitos imediatos.

Para que entre em vigor é necessário uma resolução do Conselho de Ministros e uma portaria, requisitando o número mínimo de trabalhadores considerado essencial para o cumprimento dos serviços. A portaria tem que precisar o seu objecto e duração, tal como o regime de prestação de trabalho dos requisitados.

A portaria, adiantou a ministra da Saúde, tem efeitos imediatos. "Estando em causa já casos concretos, de algumas instituições que estão a ser afectadas pela greve, que são preocupantes e que revelam incumprimento dos serviços mínimos, ela [a portaria] será produzida esta tarde e sua produção de efeitos é imediata."

O secretário de Estado da Presidência do Conselho de Ministros explicou que a requisição civil terá efeitos "até ao final do período para o qual existe um pré-aviso de greve". Neste caso, até ao final de 28 de Fevereiro. Mas outras portarias poderão ser publicadas com o mesmo objectivo, adiantou o responsável: "Na sequencia desta resolução, que reconhece esta necessidade, haverá uma ou mais portarias que em função da necessidade e numa lógica de proporcionalidade delimitação o âmbito da requisição civil."

Nova greve

Se a requisição civil não for acatada, a lei prevê consequências para os trabalhadores que não compareçam ou que se recusem a desempenhar as funções atribuídas, que podem passar por processos disciplinares ou mesmo configurar crime por abandono de funções.

Esta sexta-feira entra em vigor um segundo pré-aviso de greve que atinge mais três centros hospitalares: Setúbal, Lisboa Norte e Universitário de Coimbra. A paralisação, também com enfoque nos blocos operatórios, termina no final de Fevereiro.

Também para esta sexta-feira, a partir das 8 horas, estão marcadas várias concentrações de enfermeiros junto de alguns dos hospitais que já estão a ser afectados pela chamada greve cirúrgica: Santa Maria, São João, Coimbra e Viseu. A bastonária dos enfermeiros vai estar presente na concentração marcada para junto do Hospital de Santa Maria.

Ana Rita Cavaco convocou os dois sindicatos que decretaram a greve e o Movimento Greve Cirúrgica para uma reunião no dia 12 de Fevereiro, a realizar na sede da Ordem. Foram também convocados os enfermeiros directores dos centros hospitalares afectados pela paralisação.

Modelo de greve inédito

A greve dos enfermeiros em blocos operatórios começou há uma semana e estava previsto que se prolongasse até ao fim deste mês. Entre 22 de Novembro e 31 de Dezembro, durante 40 dias, os enfermeiros fizeram a primeira "greve cirúrgica", que provocou o adiamento de cerca de 7500 cirurgias. 

O modelo desta greve é inédito em Portugal, devido à forma de financiamento, através da recolha de dinheiro numa plataforma de crowdfunding (financiamento colaborativo) para compensar os grevistas pelos dias em que não trabalham. É este financiamento que permite que as greves tenham uma duração superior ao que é habitual. 

O protesto foi idealizado por um grupo espontâneo de jovens enfermeiros criado no WhatsApp, que se autodenomina "Movimento Greve Cirúrgica" e a greve foi decretada por dois sindicatos: Sindicato Democrático dos Enfermeiros de Portugal (Sindepor) e Associação Sindical Portuguesa dos Enfermeiros (ASPE).

Um grupo de enfermeiros em greve foi objecto de requisição civil em 1976. Mas tem sido sobretudo no sector dos transportes que este instrumento tem sido usado pelo Governo. Em 1977, com Mário Soares, o Governo usou-a para impedir uma greve de pilotos na TAP.

Vinte anos depois, em 1997, o Governo do também socialista António Guterres decidiu igualmente avançar com esta medida extrema para impedir uma nova greve dos pilotos marcada para o Verão desse ano. Em 2005, o Governo decretou igualmente a requisição civil dos funcionários judiciais, alegando falta de cumprimento dos serviços mínimos durante a greve. Em 2014, o Governo de Pedro Passos Coelho avançou com uma requisição civil por causa de uma greve na TAP.

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