A fogueira das liberdades

Viktor Orbán ainda não acabou o seu trabalho de consolidação de poder. O próximo passo é manter-se no poder por meios fraudulentos, em plena União Europeia.

O relatório anual Liberdade no Mundo, da ONG Freedom House, é uma publicação respeitável, assente numa metodologia rigorosa e objetiva, que atribui pontos em 25 indicadores de liberdades e direitos cívicos, todos eles baseados na Declaração Universal de Direitos Humanos. Todos os anos este relatório nos diz que países, de acordo com esta metodologia, são “livres”, “parcialmente livres”, ou “não-livres” — da Eritreia, que tem apenas 2 pontos em 100, até à Noruega, a Suécia e a Finlândia, que partilham o topo da tabela com um “100” perfeito (Portugal tem um muito respeitável 96 em 100, à frente da Espanha, com 94, ou dos EUA, que desceram para 86 pontos em 100). Nos países de língua portuguesa, a situação piorou no Brasil mesmo ainda antes de Bolsonaro, e melhorou um pouco em Angola, mas o motivo de maior orgulho só pode ser mesmo Cabo Verde, com a melhor pontuação de África, 90 pontos que estão à frente da avaliação de países da Europa como a Polónia, a Eslováquia, e mesmo a ocidental Itália.

Olhando para o mapa do mundo que acompanha o relatório, só uma pequena região do mundo parecia até agora inexpugnavelmente livre: a União Europeia. Uso o verbo no passado porque este ano, pela primeira vez, um país da União Europeia foi declarado apenas “parcialmente livre”, como os regimes autoritários e as “ditamoles” de antanho. Não precisa de fazer um grande esforço para adivinhar: é a Hungria. Uma coisa é certa: se a Hungria estivesse neste momento em processo de candidatura para uma adesão à UE, o país estaria em incumprimento dos chamados “critérios de Copenhaga” que determinam a possibilidade de entrada de um país na União Europeia. A questão que se impõe, então, é: se a Hungria não poderia entrar, como é possível que o governo húngaro continue a minar a situação das liberdades e direitos humanos na UE?

A resposta também não é, a esta altura do campeonato, complicada: cumplicidade. E essa cumplicidade é, quase exclusivamente, do poderosíssimo Partido Popular Europeu de que fazem parte, em Portugal, PSD e CDS. Nos tempos do bloco de leste e das suas “democracias populares”, o PSD e o CDS teriam brandido mais um relatório da Freedom House para nos demonstrar — e bem — como era intolerável o espezinhamento das liberdades naqueles países. Hoje, quando o mesmo relatório demonstra que a Hungria do século XXI vai a caminho do seu passado autoritário, PSD e CDS passam como cão por vinha vindimada.

Viktor Orbán ainda não acabou o seu trabalho de consolidação de poder. Depois de destruir a imprensa da oposição, de alterar a Constituição diversas vezes e de decapitar qualquer veleidade de independência do judiciário, Orbán conseguiu este ano expulsar do país a melhor e mais independente universidade dos países do antigo “bloco de leste”. Mas ele não vai ficar por aqui: o próximo passo é manter-se no poder por meios fraudulentos, em plena União Europeia.

No início, Orbán ganhava eleições por esgotamento dos outros grandes partidos húngaros e pela sua inegável capacidade de aproveitar oportunidades políticas. Mas Orbán nunca pretendeu arriscar a sorte em eleições futuras. Logo a partir de 2012 mudou o sistema eleitoral (apenas com os votos do seu partido) para garantir que mantinha uma maioria de dois terços no parlamento, redesenhando os círculos eleitorais nacionais e assegurando-se que o método de eleição tirava partido da fragmentação da oposição. Mais tarde soube introduzir todo o tipo de estratagemas, desde o aparecimento no boletim de voto de pseudo-partidos com símbolos e siglas semelhantes aos dos seus adversários, até à facilitação dos votos dos húngaros “étnicos” nos países da vizinhança (dificultando-se em simultâneo o exercício do direito de voto aos húngaros emigrados na Europa ocidental, em geral mais oposicionistas).

Descobriu-se agora que as fraudulentas práticas eleitorais do governo húngaro vão ainda mais fundo. Uma investigação recente, que já não foi a tempo de ser incluída no relatório da Freedom House, determinou que o governo de Orbán, em geral tão picuinhas com a pureza da nacionalidade húngara (exceto nos “vistos gold”, que concede generosamente a árabes, russos e chineses ricos e corruptos) tem atribuído de forma fraudulenta a nacionalidade húngara, para efeitos eleitorais, a milhares de cidadãos ucranianos. Num dos casos, mais de 60 mil ucranianos deram como endereço postal a morada de um edifício arruinado junto à fronteira e tiveram direito à nacionalidade, e ao voto precioso para Viktor Orbán.

Sempre achei que, mais tarde ou mais cedo, viríamos a ter sentado no Conselho Europeu um chefe de Estado ou de governo de eleição duvidosa, e que Orbán seria um candidato forte a essa duvidosa honra. Na pior das hipóteses, tal já terá acontecido sem termos dado por isso. A única solução possível, a médio e longo prazo, é introduzir os critérios internacionalmente reconhecidos de fidedignidade dos atos eleitorais no direito da União Europeia. Mas a curto prazo, só há mesmo uma coisa a fazer: expulsar o partido de Orbán do PPE já, imediatamente, para ontem. Mas PSD e CDS, como os seus parceiros, continuam mudos e quietos enquanto Orbán manda a nossa liberdade para a fogueira — e até apoiam o seu maior cúmplice, Manfred Weber, na corrida para a presidência da Comissão Europeia. Mais escandaloso não poderia ser.

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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