Esse horror e medo do país periférico…

Sempre que alguém começa a falar da Regionalização, lá temos de ouvir o coro do costume: vem aí o diabo, são os partidos a criar tachos para os rapazes, preparem-se para a escalada da corrupção, isto assim não anda para a frente. Como os jacintos, que despontam todas as primaveras, a reacção é previsível, embora as explicações usadas para apregoar a maldição careçam do aroma das flores. Custa a acreditar que boa parte da intelligentsia, sempre dada a impressionar os nativos com citações dos Federalist Papers, ou sempre munida de eruditas lições sobre o que Portugal deve aprender com os outros, chegue à Regionalização, mude de máscara e nos diga que aquilo que é uma força motriz do mundo civilizado não se aplica por cá. Porque o país periférico é demasiado iletrado e bronco para decidir sobre os seus destinos. Mandassem eles e em vez de autarcas eleitos teríamos outra vez juízes de fora.

Muito mais do que discutir os méritos da Regionalização interessa, em primeiro lugar, saber por que razão ela se tornou um campo no qual a emoção domina sobre a razão, onde o preconceito triunfa sobre a inteligência. Tudo começa por essa enorme desconfiança sobre tudo o que acontece fora da capital, esse lugar distante onde os empresários estrafegam os lucros em Ferrari, onde os autarcas são venais, onde a sociedade civil permanece dominada pelos caciques. Cidades como Braga ou Viseu são exemplares do ponto de vista da qualidade de vida, universidades como a de Aveiro ou da UTAD são líderes em áreas científicas, os autarcas deram um banho de gestão ao poder central na redução da dívida, mas nada disso conta quando em causa estão preconceitos.

A Regionalização irrita também porque põe em crise um certo espírito cortesão que prevalece associado ao modelo de organização medieval do estado. Da mesma forma que há quem desacredite a democracia em África por causa dos africanos, por cá desacredita-se a criação de autarquias regionais porque dariam um trunfo aos políticos ambiciosos para dominarem a cidadania inocente e crédula. Tal como está, o Portugal centralista é que está bem - um país dominado pelo estado, tomado de assalto pela função pública e facilmente infiltrado pelos interesses.

Entendamo-nos: é essa cabeça gigante do estado central, insondável e obscura que está na origem da corrupção endémica que triangula escritórios de advogados, políticos e empresários ou banqueiros amigos. É nessa relação conspícua que se desenrola na sombra de gabinetes ligados a secretarias e dependentes de repartições em cascata que o Estado se esgota e se delapida. Vejam os negócios ruinosos da Caixa, vejam a história da Operação Marquês e digam se não é fácil terem acontecido nesse mastodonte irreformável que é o estado centralizado que persiste. Medo de mudar? Tudo bem, mas não é porque o sistema funciona.

Ah, mas se houvesse regiões haveria mais tachos. Alguém faz ideia do número de funcionários e dirigentes que a administração desconcentrada do Estado tem espalhada pelo país? Qualquer junta regional poderia ser criada com esse pessoal e, no final do dia, seria até fácil constatar que há uns milhares de delegados do Governo, de sub-delegados, de assessores e outros cargos que servem para coisa nenhuma. A opacidade que se obtém pela fragmentação dos serviços, por vezes por dezenas de edifícios, os custos provocados pela ineficiência talvez pudessem ser reduzidos.

A questão fundamental, porém, é outra. É a crença de que se pode governar um estado moderno ajustado às complexidades da economia e das sociedades modernas através de um modelo cibernético que comanda todos os terminais. É errado. Quando o Norte e a Galiza entraram na Europa em 1986, a região portuguesa comparava em riqueza com os vizinhos. Trinta anos de políticas regionais depois, a Galiza está muito à frente do Norte. Porquê? Porque foi capaz de conceber e executar políticas à escala regional como todos os países desenvolvidos fazem. Fizeram tudo bem? Não fizeram, mas não precisaram de inventar a roda para darem conta que ninguém melhor que as pessoas da região sabem o que é melhor para a região. Não se chama a isto democracia?

Nos Estados Unidos ou na Europa acredita-se nesse velho princípio sábio da política (o da subsidiariedade) que nos diz que tudo o que se puder decidir no local não deve passar para a esfera nacional. Os mentores do centralismo professam todas as prescrições do liberalismo ou até o neoliberalismo, menos a que mais nervo e fundamento dá a esse ideário: a crença que estados centralizados negam a eficiência e ameaçam a liberdade individual. Por cá, porém, nada disso lhes parece lógico. O horror ao país real é tal que, em nome do populismo dos tachos, preferem que tudo continue como está. A olhar a média europeia cada vez mais distante.   

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