Damas da corte desesperadas: quem já gostava vai gostar, quem não gostava não vai passar a gostar

O autor de Canino e A Lagosta não se vendeu ao prestígio BBC, A Favorita é tão singular como os seus filmes anteriores; quem já gostava vai gostar, quem não gostava não vai passar a gostar.

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A Favorita é bicho seco, gélido, que nem o calor das actrizes consegue tornar mais fácil de engolir
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Há algo de perverso em ver A Favorita à cabeça da corrida aos Óscares. Porque a última coisa que esperaríamos era ver Hollywood a render-se à estranheza autoral do realizador que deu o “pontapé de saída” internacional para a “nova vaga” do cinema grego, Yorgos Lanthimos (Canino). E porque a Academia de Hollywood gosta mesmo é de banalidades correctas, profissionais e inofensivas, “de prestígio” como soe dizer-se, como A Paixão de Shakespeare ou O Discurso do Rei. Tudo aquilo que esta história da Inglaterra do século XVIII não é, carregada como está do absurdismo entomológico de Lanthimos, para quem os jogos de poder da corte da rainha Anne são um espaço laboratorial de xadrez posicional. Ou seja: Lanthimos chega aos Óscares sem ter precisado de mudar o seu cinema, mesmo que agora tenha orçamentos consequentes e actores de primeira linha (Olivia Colman e Rachel Weisz, aliás, são “repetentes” no universo do grego, depois de A Lagosta), e A Favorita não podia estar mais longe do objecto calculista de prestígio à medida dos Óscares. Calculista, não; calculado, sim, na medida em que todo o cinema de Lanthimos é calculado, programado, planificado.

O que faz sentido numa história como esta, de “manobras de bastidores”, que funciona também como síntese da exploração que Lanthimos tem vindo a fazer do “amor em tempos de cólera”, da emoção como fraqueza em universos onde a sua manifestação pública corre o risco de deitar tudo a perder. Essencialmente, A Favorita é um perverso triângulo amoroso entre três mulheres sôfregas para quem o amor e o poder são indissociáveis ao ponto de começarem a confundi-los: a solitária rainha Anne (Colman), a sua confidente, conselheira (e amante em segredo) Lady Sarah (Weisz), e a recém-chegada prima desta, Abigail (Emma Stone), aristocrata caída em desgraça procurando resgatar-se. Todas elas desesperadas, todas elas embrenhadas em jogos de sedução que são também jogos de poder; Sarah e Abigail capazes de tudo para alcançar e manter o controlo sobre os seus destinos, a rainha como uma mulher destroçada com plena consciência da solidão do poder.

São três papéis em ouro para três actrizes que os abocanham com paixão e entrega, e que Lanthimos filma como uma tragédia opressiva, claustrofóbica, onde o luxo e o requinte dos palácios e dos brocados é um espartilho que constringe mulheres muito mais poderosas, e muito mais inteligentes, do que os homens que as rodeiam. Como qualquer filme do grego, A Favorita é bicho seco, gélido, que nem o calor das actrizes consegue tornar mais fácil de engolir. Isso não é forçosamente mau, mas por vezes corre o risco de cair no demonstrativo gratuito; Peter Greenaway veio-nos à cabeça, ou não fosse A Favorita um filme onde a música é fulcral na construção do ambiente (mesmo que aqui a banda-sonora seja quase inteiramente de época, com Handel, Vivaldi, Bach e Purcell a coexistir com algum Messiaen). Greenaway, no entanto, teria sido mais pedante; Lanthimos prefere a frieza absurda ao cinismo altaneiro, e deve estar a rir-se muito por dentro por ver a sua tragédia subversiva disfarçada de filme época, nos antípodas da “qualidade BBC”, a partir na linha da frente dos Óscares.

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