As luzes não se apagaram: Wilko Johnson vive

Deram-lhe meses de vida: ia morrer de cancro do pâncreas. Mas o diagnóstico estava errado e o ex-Dr. Feelgood sobreviveu. A história “incrível” de Wilko passa no dia 12 pelo CCB.

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Leif Laaksonen

Em Janeiro de 2013, o inglês Wilko Johnson soube que ia morrer. O relato que faz desse “ano absolutamente incrível” é torrencial: “Quando me disseram que tinha cancro do pâncreas, ‘não podemos operar, tens menos de um ano de vida’, foi estranho ouvir isso. Quando o tipo me disse isso, eu estava absolutamente calmo: ‘Ai é?’. Saí do hospital, estava um dia muito bonito de Inverno, e quando olhei para o céu, para as árvores nuas, com o céu por trás, parecia-me belo. De repente, senti-me tão bem, foi quase um êxtase, ‘isto é fantástico’, voltei para casa do hospital a pensar ‘sabe tão bem’. Pensei: ‘Talvez o choque venha com atraso, daqui a um minuto vou cair no chão aos gritos’ [risos]. Mas isso não aconteceu. Foi um sentimento maravilhoso. Disseram que me podiam dar quimioterapia, que isso me poderia dar mais uns meses [risos], mas eu disse: ‘não, não, não quero passar mais tempo no hospital, tenho dez meses, ou coisa que o valha, vou levar uma boa vida enquanto posso’. Coisa que fiz.”

A história recente do fundador dos Dr. Feelgood e músico em nome próprio, hoje com 71 anos, não se fica por aqui. Retomemos o relato: “Coisas maravilhosas aconteceram. Dar concertos no Reino Unido, no Japão, concertos óptimos. E foi por causa disso [da doença] que Roger Daltrey [o vocalista dos The Who] me perguntou se queria fazer um álbum. Quando estávamos a fazê-lo, era a altura em que acabavam os meus dez meses, era muito estranho. De vez em quando pensava: ‘isto é muito estranho, vou morrer, vou morrer! Mas tive uma vida muito boa e agora estou a acabá-la fazendo um disco com Roger Daltrey. Não me posso queixar, não me posso queixar’. Foi um ano muito estranho, mas não sabia que se iria tornar mais estranho – porque ia conhecer o tipo que disse que me podia curar. E curou!”

Conta tudo isto a sorrir, comovido. Foi por continuar a dar concertos – uma “digressão de despedida” – que conheceu Charlie Chan, cirurgião e fotógrafo de rock. A guitarra, que nos anos 70 começou a brandir como metralhadora, embarrava no nódulo “do tamanho de um melão” que tinha na zona do estômago – chegou a pesar três quilos. “Depois do Verão, Charlie Chan veio a minha casa e disse-me: ‘Há algo de estranho. Se foste diagnosticado com um cancro do pâncreas em Janeiro devias estar morto agora ou pelo menos muito doente’. E eu ainda andava por aí, apesar do nódulo grande.”

Chan recomendou-lhe outro cirurgião, que lhe disse que a operação era possível. “Depois de todos os meses em que tinha a certeza de que ia morrer, de que nada me poderia salvar”, vinca. “Foi no último minuto: este tumor era tão grande, era óbvio que ia rebentar.” Nos meses que passou no hospital, “cheio de morfina”, no recobro de uma operação de 12 horas, contaram-lhe que o disco que fizera com o vocalista dos The Who, Going Back Home (editado em Março de 2014), era o “mais vendido” da carreira de Wilko. “Dias estranhos. Um ano absolutamente incrível.”

De olhos postos nas estrelas

Blow Your Mind, lançado em 2018 e pretexto para o concerto de 12 de Fevereiro, no Centro Cultural de Belém, em Lisboa, é o primeiro álbum de originais em nome próprio de Wilko em 30 anos. Não contém revoluções: isto é R&B nervoso, espicaçado, blues de arame farpado, comboio rock’n’roll. “Em todos estes anos, sempre fiz uma coisa e é a coisa de que gosto.”

Nos anos 70, quando os Dr. Feelgood tocavam nos pubs ingleses, faziam algo que os dinossauros prog desprezavam: rock’n’roll primitivo. Mas traziam uma centelha da mudança de paradigma por vir: o punk já estava ali, em potência, na presença física intimidante do vocalista Lee Brilleaux, que encontrava eco e reforço na guitarra-metralhadora de Wilko e nos seus olhos penetrantes. “Lee, o cantor, era muito... [risos]. Que tipo! Era muito tenso. Quando estava em palco, costumava expressar agressão [faz cara de poucos amigos], parecia muito feroz. E eu comecei a absorver aquilo, a ir com ele. As pessoas adoraram. Podes tocar um óptimo solo de guitarra e as pessoas gostam, mas se tocares o mesmo solo enquanto fazes um ar feroz e ‘disparas’ sobre elas [com a guitarra] as pessoas gostam ainda mais.”

“Passámos um ano a tocar em Londres e a ficar populares. Foi nessa altura em que as bandas punk nos observavam”, refere. Os Dr. Feelgood eram diferentes de grupos “como os Yes”, que tinham “montes de equipamento, espectáculos de luz”. “Não fazíamos nada disso: simplicidade absoluta, muito pouco equipamento, tudo muito directo. Não tínhamos nada a não ser nós próprios para projectar a nossa música. E claro que isso teve um impacto tremendo, porque é muito mais excitante do que jogos de luzes, bailarinos de ballet e coisas no palco”, diz.

Nesses anos desenvolveu uma forma de tocar guitarra que ainda intriga muita gente. “Costumavam dizer aos nossos roadies: ‘Onde está o gravador? Aquele tipo não está a tocar todas estas guitarras’”, recorda-se. Aprendeu sozinho, nos anos 60, a ouvir a guitarra de Mick Green (The Pirates) – falhou a cópia, acabou com o seu próprio estilo. É essa guitarra que ouvimos, exultante, a celebrar a vida, em Blow Your Mind. “Não queria fazer um disco que fosse bom, rock'n'roll… queria que fosse muito bom”, sublinha. “Foi feito de uma forma muito espontânea. Demorou 13 dias.”

Com velhos cúmplices, foi para estúdio só com duas ou três canções prontas. Uma delas é Marijuana: “Feels so good, deep down in my misery. Man, I just sit here thinking this, thinking that, thinking just one last thing and that’s the end of me.” “Uma das primeiras coisas que fiz depois do diagnóstico foi ir para casa e escrever esta canção. É sobre estar sentado em casa, com a escuridão lá fora, à espera de morrer, à espera da morte.”

A morte não chegou, Wilko vive. E que vida: nos últimos anos, o papel fundador dos Dr. Feelgood no punk seria consagrado em Oil City Confidential (2009), documentário de Julien Temple; o disco com Roger Daltrey e Blow Your Mind foram lançados pela Chess, a casa histórica de gente como Muddy Waters e Bo Diddley (“Se alguém me dissesse, quando era adolescente, que um dia teria um disco na Chess Records... Há tantos heróis na Chess.”); Wilko entrou na série televisiva Game of Thrones na pele do carrasco mudo Ilyn Payne (“Queriam este tipo violento, com ar duro, que não diz muito – aliás, nada”), papel que perdeu devido ao cancro. Ri-se: “As coisas mais estranhas estão a acontecer no fim da minha vida.”

Aos 71 anos, continua maravilhado com o mundo: o apelo juvenil da guitarra de Mick Green, o prazer de uma jam, a beleza dos astros, que observa desde o fim dos anos 70, enquanto astrónomo amador. “Numa digressão na Austrália, com Ian Dury and the Blockheads, chegámos lá e era noite. ‘Oh man, o céu do sul!’. Fui para o terraço do hotel, onde havia uma piscina, e deitei-me numa espreguiçadeira a pensar que ia ver estrelas diferentes. Havia montes delas: ‘são coloridas e movem-se!’ De repente, percebi que eram pirilampos, atraídos pelas luzes [risos]. Mas percebi que não percebia nada das estrelas. Quando voltei, comecei a olhar para as estrelas.”

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