Atrás das grades, "El Chapo" ainda é o “Robin Hood” de Sinaloa

Joaquín Guzmán tornou-se um mito da cultura popular mexicana e um fantasma para as autoridades do país, numa história de drogas, violência e lutas políticas no México.

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Um jovem mexicano reza na capela de Jesús Malverde em Culiacan Reuters/Daniel Aguilar

No estado de Sinaloa, o coração do narcotráfico mexicano, a admiração pelo “traficante mais poderoso do mundo” ainda vive, apesar do progresso do governo na luta contra a violência dos cartéis.

Joaquin "El Chapo" Guzman passou de um rapaz de origens humildes ao homem mais procurado do México. Enfrenta agora um processo de julgamento no Tribunal Federal de Brooklyn, em Nova Iorque, e a possibilidade de passar os seus últimos anos atrás das grades, depois de uma carreira inigualável que fez dele um dos maiores criminosos das últimas décadas.

No estado de Sinaloa, onde Guzman nasceu e se afirmou, o governo garante que o cartel de "El Chapo" está "contido" e que é hoje controlado por forças militares.

Durante 2018, o primeiro ano completo desde que Guzmán foi extraditado para os Estados Unidos, a participação do Cartel de Sinaloa na contagem de assassinatos no México caiu para o menor número desde que se iniciaram os registos, há duas décadas.

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Joaquin Guzman — ou "El Chapo"

No entanto, a desconfiança pelo governo permanece nesta região dividida entre aldeias montanhosas inacessíveis e praias soalheiras. Daqui saíram boa parte dos principais líderes do crime mexicano. Alguns moradores dizem mesmo que o próprio cartel tem tentado tranquilizar os ânimos.

Em Culiacán, a capital e a maior cidade do Estado de Sinaloa, onde o luxo convive de perto com a pobreza extrema, o apoio a Guzmán é forte. "Ele faz o que a polícia não faz, protege as pessoas", afirma Antonio Pinzon, um trabalhador rural de 45 anos durante uma peregrinação à capela de Jesús Malverde. Pinzón fala por inúmeros moradores de Sinaloa quando compara Guzmán a Malverde, um santo popular semelhante a Robin Hood, venerado por alguns católicos e traficantes de droga.

Nascido numa vila montanhosa pobre de Sinaloa, onde os traficantes cultivam ópio e marijuana desde o início do século XX, Guzmán começou a subir na hierarquia do submundo mexicano nos anos 1980 à medida que os chefes mais velhos se retiravam.

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Joaquin Guzman, à esquerda, numa fotografia encontrada numa rusga num rancho Procuradoria-geral da República do México/Reuters

Droga, política e mortes

Preso em 1993, Guzmán fugiu da prisão oito anos depois e começou a estabelecer a sua rede criminosa de Sinaloa como o maior cartel do México. Eliminou rivais, subornou funcionários e até conseguiu um lugar na lista dos mais ricos do mundo elaborada pela revista Forbes

Especialistas em segurança afirmam que os milhares de milhões de dólares gerados pelo cartel dão à organização criminosa o poder que as pobres autoridades locais receiam desafiar. Instalou-se a ideia generalizada de que os políticos são controlados pelos traficantes através da corrupção.

Sem o consentimento dos chefes do cartel, era quase impossível ser-se eleito em alguns sítios de Sinaloa, confirma um político do estado que falou com a Reuters sob condição de anonimato.

Acenando com a diminuição da taxa de criminalidade, o ministro de Segurança Pública de Sinaloa, Cristóbal Castañeda, afirma que o governo perseguiu todos os cartéis com a mesma determinação.

Enquanto os assassínios no México aumentaram um terço para mais de 33 mil no ano passado, em Sinaloa diminuíram quase um quinto para 1072 (3,2% do total), segundo dados do Ministério do Interior. Uma década antes, nos anos de domínio de Guzmán, Sinaloa representava 9% do número de homicídios no México.

Castañeda afirmou que as representações de traficantes em séries televisivas como Narcos e El Chapo desviaram a atenção dos crimes de Guzmán. "Em vez de enaltecerem as autoridades, enaltecem o criminoso, fazem com que se pareça a Robin Hood", disse Castañeda à Reuters.

"Uma pessoa magnífica"

Depois de mais de uma década à solta, Guzmán foi novamente preso em 2014. Mas, numa reviravolta humilhante para o governo mexicano, em Julho de 2015, fugiu da sua cela na prisão através de um túnel de um quilómetro e meio. Foi recapturado seis meses depois.

Guzmán foi extraditado em Janeiro de 2017. Desde Novembro do ano passado, está a ser julgado em Nova Iorque, acusado de tráfico de cocaína, heroína e outras drogas com destino aos Estados Unidos. Nos próximos dias é esperado um veredicto.

Testemunhas alegam que Guzmán gastou milhões de dólares para subornar funcionários públicos e ordenou ou cometeu ele mesmo assassínios contra rivais. Os seus advogados de defesa contrapõem que o verdadeiro cérebro por trás do Cartel de Sinaloa é o seu sócio Ismael "El Mayo" Zambada, e que Guzmán, hoje com 61 anos, é um mero bode expiatório. Em Sinaloa, poucos disputam a liderança de Guzman, mas a influência de Zambada também é amplamente reconhecida.

"Do que podemos testemunhar em Sinaloa, Zambada era o responsável", afirma Manuel Clouthier, cidadão de Culiacán e ex-congressista federal independente. "Quando [Guzmán] foi detido nada mudou porque o verdadeiro responsável não foi capturado".

Desde a detenção de Guzmán, Zambada consolidou de forma constante o seu poder dentro do cartel, defende Mike Vigil, ex-chefe de operações internacionais da DEA (Drug Enforcement Administration), um órgão de polícia federal do Departamento de Justiça dos EUA de combate ao tráfico de droga.

Desde a diversificação de crimes até à procura de novas drogas, passando por golpes contra o seu principal rival, o Cartel de Jalisco Nova Geração, tudo permitiu que o cartel de Zambada aumentasse os seus negócios em cerca de 15% a 20%, estima Vigil.

Zambada também conseguiu manter a violência sob controlo, afirma Ismael, um vendedor de livros no exterior da catedral de Culiacán. "Sabemos que Guzmán está envolvido em maus negócios, mas ele é uma pessoa magnífica", acrescenta. "É uma pena que não vá conseguir escapar dos Estados Unidos.”

Trafricantes com “carros pequenos”

Segundo Castañeda, Sinaloa precisava "idealmente” de cerca de nove mil polícias para fazer cumprir a lei e manter a ordem – mais do dobro do que actualmente –, mas garante que os narcotraficantes se tornaram mais discretos desde a retirada de Guzmán. "Agora usam carros pequenos. Não são tão ostensivos ", disse ele. "A situação mudou. Está diferente". 

No cemitério dos Jardines del Humaya, onde alguns chefes do narcotráfico estão enterrados em túmulos faraónicos, os trabalhadores contam que a ausência de Guzmán não prejudicou os negócios. "Temos muito trabalho", diz o carpinteiro Santiago Rojo enquanto dá os últimos retoques num mausoléu de dois andares com ar condicionado, escada de mármore, casa de banho e televisão.

Estima-se que até 40% da economia de Culiacán se baseie em dinheiro ilícito. O ex-deputado Manuel Clouthier afirma que o Cartel de Sinaloa se tornou especialista em lavagem de dinheiro através de vias legais.

Mas dinheiro de origem incerta circula de forma livre. Debaixo de guarda-sóis coloridos na zona do Mercadito, no centro de Culiacán, dezenas de vendedores, na maioria mulheres, compram e vendem dólares abaixo das taxas de mercado – uma prática que, acredita-se, facilita a lavagem de dinheiro.

A polícia faz rusgas com regularidade, mas Juán, um vendedor de dólares, estima que o número de postos de venda tenha duplicado nos últimos três anos.

Aqui também, é grande a sombra de “El Chapo”. Antes de se tornar traficante de droga, a protagonista de La Reina del Sur, do escritor espanhol Arturo Pérez-Reverte, vendeu dólares exactamente no mesmo sítio. O livro acabou por se tornar num programa de televisão de sucesso e a sua heroína, Kate del Castillo, foi a protagonista de várias manchetes quando se descobriu que juntamente com o actor norte-americano Sean Penn tinha visitado El Chapo enquanto este estava escondido.

DVDs da série foram encontrados no último esconderijo de Guzmán.

Tradução de Raquel Grilo