A febre referendária. Exemplos da França e da Itália

Os Gilets Jaunes exigem a generalização do “referendo de iniciativa cidadã”. O Cinco Estrelas quer legislar por referendo. Cresce a hostilidade à democracia representativa.

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1. A menos de quatro meses das eleições europeias, no meio das tempestades e paixões que assolam a Europa, a democracia “tal como a conhecemos” está sob dois fogos. No Leste — casos da Hungria e da Polónia — regimes que venceram eleições assumiram o monopólio da representação do povo, desprezando o Estado de Direito e o pluralismo. No Oeste, designadamente na Itália e na França, desenha-se uma vaga de contestação da democracia representativa em nome de uma “hiperdemocracia” referendária.

Num livro publicado há um ano, Jan Zielonka, professor de Política Europeia em Oxford, associou essas várias frentes. “Sob ataque não está apenas a União Europeia, mas também outros símbolos da ordem actual: a democracia liberal, a imigração e uma sociedade multicultural, ‘verdades” históricas, partidos políticos moderados e media tradicionais, tolerância cultural e neutralidade religiosa.” O livro, significativamente intitulado “Contra Revolução” — Counter-Revolution. Liberal Europe In Retreat — é um libelo contra as elites dirigentes. Ele distingue os diversos fenómenos mas interessa-lhe o denominador comum: a Europa não se soube adaptar às imensas mudanças geopolíticas, económicas e tecnológicas que varreram o Continente nas últimas três décadas.

Por razões de método — as reacções do Leste e do Oeste são de natureza distinta — separo as duas frentes para me concentrar na “febre do referendo” e no confronto entre democracia representativa e democracia directa em dois casos emblemáticos: se na Itália esta é uma velha questão, o exemplo francês é uma surpresa, até por ocorrer no país com mais funda tradição centralista na Europa — embora não se deva esquecer uma persistente cultura antiparlamentarista.

2. O fenómeno italiano é mais antigo e o partido que o encarna, o Movimento 5 Estrelas (M5S), está hoje no governo. Começo, no entanto, pela França onde o movimento dos Gilets Jaunes não está ainda estruturado. Exprime uma revolta contra a “recomposição do mundo” pela globalização e a incapacidade das elites políticas de a explicar e regular. É uma revolta defensiva: “Inscreve-se mais no tipo de sociedade que se desfaz do que no da que nasce” (Michel Wieviorka). Olha o passado, não tem perspectivas sobre o futuro.

Os Gilets Jaunes foram tomados pela febre referendária, exigindo a generalização do “referendo de iniciativa cidadã” (RIC, na foto). Perante os extensos e contraditórios “cadernos de queixas”, a reivindicação do referendo é um elemento unificador. Cita-se Jean-Jacques Rousseau e admira-se o modelo suíço. Contestando as instituições políticas, exigem quatro tipos de referendo: o “legislativo”, que permitiria aos cidadãos propor directamente uma lei curto-circuitando o Parlamento; dois outros que permitiriam anular leis e reformar a Constituição; e, enfim, o emblemático “referendo revogatório”, que teria o poder de destituir a qualquer momento um responsável político, do presidente de uma junta de freguesia ao Presidente da República. 

O ponto central não está nas reivindicações nem, por enquanto, numa ideologia de democracia directa, que parece ter sobretudo um papel instrumental. Está “na animosidade contra o Estado e os seus representantes, muito mais forte do que a que exprimem perante as categorias sociais mais favorecidas”, observa o sociólogo Olivier Galland. São importantes a “alergia fiscal” e a cólera contra “os poderes públicos que desperdiçam os nossos impostos.” Não é um conflito de classes. “O tema que domina é o de um movimento anti-elites, profundamente hostil aos representantes políticos (primus inter pares, ao Presidente da República), aos eleitos, aos jornalistas e aos media suspeitos de conivência com o mundo político.” Por isso tem um poderoso efeito de deslegitimação das instituições. Vai o movimento dar origem a uma formação política? É uma incógnita.

3. Na Itália, o debate político das primeiras semanas do ano foi dominado por um projecto de revisão constitucional apresentado pelo M5S, centrado na proposta do referendo dito “propositivo”, em que os cidadãos votariam projectos de leis que eles próprios elaborariam. Para muitos analistas, o projecto visa “esvaziar o Parlamento” e “liquidar os partidos”. Para o Cinco Estrelas, seria a etapa da “democracia participativa” que, a médio ou longo prazo, daria lugar à democracia directa via Internet. 

Quais eram os pontos de ruptura com a democracia representativa? A função de legislar cabe ao Parlamento, sob a fiscalização do Tribunal Constitucional (TC). O referendo serve para decidir sobre assuntos singulares, sob a forma de “sim ou não”. Ora, segundo o projecto, os cidadãos apresentariam propostas de lei que, uma vez aprovadas, seriam analisadas pelo Parlamento. Em caso de desacordo, os proponentes podiam exigir novo referendo, de “desempate”, o que abriria um conflito entre o Parlamento e a “vontade popular”. Em segundo lugar, o M5S exigia a abolição do quórum de participação (que hoje é de 50%). Uma pequena minoria poderia definir a “vontade popular”. Era ignorada a intervenção do TC. 

Não dispondo da maioria qualificada de dois terços nas duas câmaras — e com a Liga a exigir a definição de um quórum — o M5S fez um recuo táctico. Aceita o controlo antecipado da constitucionalidade. E, para a lei ser aprovada, o “sim” deve ser superior a 25% do corpo eleitoral (12,5 milhões de votos). Para o M5S, esta versão corrigida do referendo propositivo é um primeiro passo. Se aprovado, quebra um princípio e estabelece um precedente. 

Para entender a discussão italiana é necessário voltar ao M5S e à sua “doutrina”. O dogma dos seus fundadores, Gianroberto Casaleggio e Beppe Grillo, era a substituição da democracia representativa por uma democracia directa via Internet. “O Parlamento? No futuro talvez deixe de ser necessário”, garante Daniele Casaleggio (filho), o actual “proprietário” do M5S, um “partido novo”, diferente de todos os outros. Deles falaremos no próximo texto. 

Algumas destas coisas parecem delirantes tolices. Há três anos, também coisas como o Brexit, Trump ou o governo do M5S e Salvini aconselhariam o hospício a quem as profetizasse.

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