Entre “Lula livre” e “Deus acima de todos”, Congresso brasileiro toma posse

Apesar da elevada renovação, é provável que as duas câmaras do Congresso sejam lideradas por dois veteranos. Reforma da Segurança Social será o primeiro teste a Bolsonaro.

Deputados do PT durante a tomada de posse em Brasília
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Deputados do PT durante a tomada de posse em Brasília EPA/JOEDSON ALVES
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Renan Calheiros é favorito para a presidência do Senado, mas tem muitos obstáculos Ueslei Marcelino/REUTERS
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Rodrigo Maia é quase certo na presidência da Câmara Adriano Machado/REUTERS

Nunca houve tantas caras novas em Brasília. O Congresso mais renovado desde a redemocratização iniciou os trabalhos esta sexta-feira, um mês depois da tomada de posse de Jair Bolsonaro. Com a polarização que tem marcado a política brasileira nos últimos tempos longe de estar acalmada, é possível que a Praça dos Três Poderes se transforme num campo de batalha quase permanente.

A tomada de posse, logo de manhã, dos 513 deputados da Câmara decorreu com um forte aroma de campanha eleitoral. À medida que prestavam o juramento, os parlamentares do Partido dos Trabalhadores (PT) lançavam gritos de “Lula livre”, enquanto os deputados eleitos pelo Partido Social Liberal (PSL) respondiam com o lema celebrizado por Bolsonaro: “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”. Outros, à esquerda, empunhavam cartazes em que recordavam Jean Wyllys – que abdicou do seu mandato por ser alvo de ameaças de morte e abandonou o Brasil – ou pediam justiça pelas vítimas do desastre de Brumadinho.

As eleições de Outubro produziram uma autêntica revolução no panorama geral das duas câmaras do Congresso. Entre os 513 deputados, 244 desempenham pela primeira vez essas funções – a entrada mais numerosa de novatos desde 1986. No Senado, entre os 81 senadores, 46 têm um assento no Salão Azul pela primeira vez. A correlação de forças políticas também mudou, especialmente com a entrada em força do PSL, um partido sem expressão há menos de um ano, e que à boleia do fenómeno Bolsonaro tem hoje a maior bancada (55) na Câmara dos Deputados, empatado com o PT.

Porém, a renovação que os números mostram dificilmente irá significar uma ruptura com as práticas políticas do passado. “O que tivemos foi uma falsa expectativa de renovação”, disse ao PÚBLICO o professor do Departamento de Gestão Pública da Fundação Getúlio Vargas (FGV), Marco Antônio Teixeira. “Os mecanismos de fazer política não se alteraram”, acrescenta.

Velha política

A principal indicação de que tudo terá mudado para ficar na mesma está nos nomes que vão liderar as duas câmaras. A eleição dos presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado ocorre ao fim da tarde desta sexta-feira, mas a convicção partilhada por quase todos os especialistas é de que Rodrigo Maia deverá ser reconduzido facilmente na Câmara, enquanto Renan Calheiros será o escolhido para liderar o Senado.

Os dois cargos são cruciais, desde logo porque ambos estão na linha de sucessão presidencial – na ausência do Presidente, cabe ao vice assumir o cargo, seguindo-se o presidente da Câmara dos Deputados, e depois do presidente do Senado. Mas o poder reside no agendamento de debates e propostas nos dois órgãos, bem como no ritmo das discussões e das votações. O presidente da Câmara tem ainda a capacidade para aceitar ou rejeitar pedidos de impeachment e o seu apoio a um Presidente pode ser determinante – Eduardo Cunha deu início ao processo de destituição de Dilma Rousseff, mas o seu sucessor, Rodrigo Maia, não o fez em relação a Michel Temer, por exemplo.

A escolha de dois nomes da chamada “velha política” para a liderança do Congresso será uma derrota para Bolsonaro, diz Marco Antônio Teixeira. “E é uma derrota também daqueles que imaginavam que uma vitória de Bolsonaro iria significar uma ruptura com as práticas políticas”, sublinha. Depois de eleitos, o Governo terá, porém, de arranjar forma de conviver com as lideranças de Brasília – perante a iminente vitória de Maia na Câmara dos Deputados, o PSL confirmou o apoio ao deputado dos Democratas (DEM).

No Senado, as distâncias de Bolsonaro face a Calheiros são maiores. Não haverá muitos políticos no Brasil que simbolizem a arte de negociar coligações conjunturais a troco de cargos e favores – prática conhecida como “fisiologismo” – tão bem como o senador veterano do Movimento Democrático Brasileiro (MDB).

Desde a redemocratização que Calheiros é aliado dos Presidentes, independentemente da sigla partidária, tendo sido já deputado estadual, federal, e inicia agora o quarto mandato como senador. Presidiu a câmara alta por três vezes, mas em 2016 foi afastado pelo Supremo Tribunal Federal, acusado de desvio de dinheiro público. O seu nome aparece em 18 processos, nove dos quais já arquivados, tornando-o num anátema para um Presidente eleito com a promessa de limpar o Brasil da corrupção.

No entanto, as aproximações vão sendo feitas. Flávio Bolsonaro, senador e filho do Presidente, não excluiu um apoio a Calheiros, dizendo que “todos os nomes colocados” estão alinhados com as prioridades do Governo. O Senado, através do seu presidente, tem o poder para abrir um inquérito a Flávio Bolsonaro, por causa do caso das transferências suspeitas para o assessor Fabrício Queiroz. Mas Renan Calheiros já afastou essa possibilidade, caso venha a liderar o Senado.

Em termos políticos, a grande prioridade do Governo é a aprovação da reforma da Previdência, equivalente à Segurança Social. A missão é muito delicada, pois qualquer mudança ao sistema irá mexer com vários grupos de interesse bem representados em Brasília, como os funcionários públicos, os militares e policiais, e os empresários. “O sucesso ou fracasso dessa reforma vai indicar o grau de dificuldade que o Governo vai ter nos próximos embates”, antecipa o professor da FGV.

Do outro lado da barricada, a oposição será encabeçada pelo PT, dono das maiores bancadas nas duas câmaras. Na véspera da reabertura do Congresso, foi anunciada a formação de um bloco que une várias bancadas da esquerda, incluindo o PT, o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), o Partido Socialista Brasileiro (PSL) e a Rede, contando com 98 deputados.

Porém, mantém-se a resistência de outras formações, como o Partido Democrático Trabalhista (PDT), em reconhecer ao PT capacidade para liderar a oposição. “O Governo tem uma plataforma que pode ser questionada e debatida, mas parece que o PT não tem outra plataforma que não o ‘Lula livre’”, observa Marco Teixeira.

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