Precisamos de megamilionários?

Chamar milionário, ou mesmo multimilionário, a alguém como Jeff Bezos, não chega sequer para arranhar a superfície do verdadeiro significado da fortuna dele.

Um livro recente do historiador Jonathan Conlin apresenta Calouste Gulbenkian como “O Homem Mais Rico do Mundo”. Calouste Gulbenkian, célebre detentor de 5% dos rendimentos do petróleo do Iraque, possuía à época da sua morte em 1955 uma fortuna que seria hoje equivalente a quase seis mil milhões de euros — o suficiente para deixar os seus descendentes muito bem na vida, criar uma das maiores fundações do mundo, deixar várias bibliotecas e museus, e legar uma coleção de arte que é um autêntico mini-Louvre. Hoje, o homem mais rico do mundo, Jeff Bezos, tem uma fortuna estimada que andará à volta de 150 mil milhões de euros. Ou seja: Bezos tem apenas 55 anos e a sua fortuna já é trinta vezes maior do que a do homem mais rico do mundo de 1955. A este ritmo, Bezos será um sério candidato a tornar-se no primeiro trilionário (na escala americana: um milhão de milhões) do planeta.

Vamos fazer uma pausa para recuperar o fôlego e o sentido da escala. Socorrendo-me de um cálculo do ativista e autor norte-americano Nathan H. Rubin, vejamos quanto é mil milhões. Imaginemos que o leitor ou leitora ganha 50 mil euros por ano (montante que apenas entre os 5% dos portugueses mais ricos é auferido). E agora imaginemos que conseguia poupar tudo, todos os anos, sem gastar um cêntimo nem pagar impostos (mas também sem investir nem ganhar juros — chapa ganha, chapa poupada). Passados 20 anos, o leitor teria um milhão de euros. Passados 200 anos, imaginando as mesmas condições atrás (e também, mais difícil, que não tivesse morrido entretanto), o leitor teria chegado aos seus primeiros dez milhões. Duzentos anos. Mas para chegar aos mil milhões, você teria de viver 20 mil anos. Vinte mil anos para mil milhões de euros. Jeff Bezos tem 150 desses.

Quando chegamos a este ponto, as palavras começam a faltar. Chamar milionário, ou mesmo multimilionário, a alguém como Jeff Bezos, não chega sequer para arranhar a superfície do verdadeiro significado da fortuna dele. Um multimilionário, ou seja, uma pessoa que tem vários milhões, poderia ser um decamilionário se tivesse dez milhões (200 anos de vida a ganhar 50 mil euros nas condições descritas acima). Um hectamilionário se tivesse cem milhões. Como deveria chamar-se algum dos mais de dois mil humanos que têm neste momento mais de mil milhões de euros? Bilionário, imitando a expressão americana? Quilionário, de quilo-milionário? Hiper-milionário? Megamilionário?

Um megamilionário, em sentido literal, seria alguém que possuísse um milhão de milhões de euros — ou seja, um bilionário na escala portuguesa e um trilionário na escala americana. Até agora ainda não há nenhum humano que tenha tal fortuna. Mas desde que a Oxfam previu que haveria um nos próximos 25 anos, em janeiro do ano passado, a fortuna de Jeff Bezos terá aumentado entre 30 mil a 50 mil milhões de euros. Já não lhe falta tudo.

Mas a pergunta que devemos fazer é: e à humanidade, fazem falta megamilionários? A resposta é: não. Ninguém precisa de ter um bilião de euros, ou um milhão de milhões de euros, que demorariam a enormidade de 32 mil anos (seis vezes a idade das pirâmides egípcias) a desaparecer se se gastasse um euro por segundo ou 86 mil euros por dia, ou 2300 anos se se gastasse um milhão por dia. Se ninguém precisa de ter um bilião de euros, a humanidade não precisa que ninguém tenha um bilião de euros.

Mas já ouço objetar: e se alguém tiver ganho um bilião de euros por si mesmo, de forma legal? Não mereceria essa pessoa o fruto do seu trabalho, supondo que tal expressão fizesse sentido? (Para mim, a expressão não faz sentido: Bezos ganhou o seu hectoquiliomilhão sendo um génio da logística, mas não o ganhou só com o seu trabalho, antes assentando o seu negócio em cima da exploração do trabalho de muita gente, e de bens públicos de que se serviu, como a rede de correios ou o estado de direito).

De qualquer forma, a pergunta pode ser devolvida: e se Bezos pudesse comprar um arsenal nuclear (neste momento ele já poderia pagar os custos de manutenção de todo o arsenal nuclear dos EUA durante vários anos)? Seria “justo” ou “merecido” que ele pudesse ter um arsenal nuclear?

Se Bezos viesse a ter um bilião de euros, ele poderia por si só estar representado no G20, e numa posição bastante confortável. Em janeiro do ano passado, Bezos já tinha uma fortuna maior do que o PIB de 125 países, mais de metade das nações do mundo. Hoje ele vai a bom ritmo de ultrapassar o PIB de Portugal, em torno dos 200 mil milhões de euros. E se achássemos “justo” ele ter um bilião de euros, por que não cinco biliões? Se assim fosse, Bezos estaria na divisão que só três economias no mundo ocupam: EUA, União Europeia e China.

Poder económico é também poder político, e ninguém deve poder deter sozinho tal poder economico-político. Com megamilhões, não apenas se pode ser mais rico do que muitos países como se pode até ser, na prática, dono de muitos países. Aliás, talvez já tenhamos chegado ao ponto em que a pergunta de se alguém deve ter megamilhões tenha perdido qualquer sentido prático, porque quem tem megamilhões pode dominar a política e os media de regiões inteiras do mundo, e assim garantir que ele e os seus colegas megamilionários nunca venham a pagar os impostos justos para tais fortunas.

Num planeta que tem um PIB per capita que, se fosse distribuído, daria cerca de 20 mil euros por pessoa (muito confortável, mais do que aquilo que ganham 75% dos portugueses) mas em que ainda há centenas de milhões a viver com menos de um euro por dia, faria sentido pensar em impostos fortemente progressivos, como defende Alexandra Ocasio-Cortez para financiar um plano de investimentos verde, com uma taxa marginal de 70% a quem ganhe mais de dez milhões de dólares (atenção: nem sequer significa pagar sete milhões de imposto e ficar com três milhões, mas antes 70 cêntimos pelo primeiro dólar ganho após os dez milhões). E impostos, além de fortemente progressivos, transnacionais, como defende Thomas Piketty, propondo a criação de impostos globais para redistribuição global. Ou, mais simplesmente e à escala europeia, pondo a Comissão Europeia a fazer sistematicamente o que já fez de forma ad hoc: cobrando às multinacionais os impostos que elas já devem aos Estados-membros.

Detidos individualmente, os megamilhões podem estar a umas décadas de distância. Mas entre os super-ricos e as multinacionais, um milhão de milhões é já o que a União Europeia perde todos os anos em evasão fiscal e planeamento fiscal agressivo. Isto é o equivalente a todo o orçamento da UE, não por um ano, nem dois, nem três — mas por sete anos. E aqui não estamos a falar de impostos que poderiam ser cobrados, mas que deveriam já estar a ser cobrados. Quando lhes perguntarem onde se iria buscar dinheiro para escolas, hospitais, ou simplesmente erradicar a pobreza num dos continentes mais ricos do mundo, pensem nisto.

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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