Início da revisão constitucional na Birmânia incomoda militares

O Parlamento aprovou a criação de uma comissão para estudar mudanças na Constituição e pode ter aberto campo de batalha de Suu Kyi com as Forças Armadas.

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Apesar de a Constituição a impedir de ser chefe de Estado, Suu Kyi exerce essas funções Reuters/Ann Wang

O lançamento do processo de revisão constitucional na Birmânia marcou o primeiro embate entre o partido da Nobel da Paz Aung San Suu Kyi e o poderoso sector militar que mantém uma grande influência no país.

A Liga Nacional para a Democracia (LND) apresentou na terça-feira uma proposta para criar uma comissão para estudar as alterações à Constituição. A bancada composta pelos deputados militares levantou-se em protesto e permaneceu em silêncio enquanto o presidente do Parlamento introduzia a proposta para votação e pedia-lhes que se sentassem, descreve a Reuters.

O desafio dos deputados fardados mostra que os esforços para completar a transição democrática na Birmânia não serão facilitados. A vitória da LND nas eleições de 2015 permitiu que a Birmânia tivesse pela primeira vez um governo liderado por civis desde 1962, quando uma junta militar tomou o poder.

Porém, os militares mantiveram um grande controlo sobre a política interna, ao abrigo da Constituição redigida em 2008. Entre várias prerrogativas, foi garantido que pelo menos um quarto dos lugares no Parlamento seja ocupado por membros das Forças Armadas – conferindo-lhes um poder efectivo de veto a qualquer alteração constitucional – e que os ministérios da área da segurança, como a Defesa ou o Interior, sejam liderados por militares.

A Constituição também proíbe que cidadãos que tenham cônjuges ou filhos de outras nacionalidades exerçam a presidência, o que impede que Suu Kyi, que foi casada com um britânico, ocupe o cargo de Presidente. A activista que se tornou um símbolo da luta contra a ditadura militar birmanesa criou o cargo de conselheira de Estado, exercendo de facto as funções de Presidente.

Quatro anos depois da grande vitória eleitoral da Liga, o debate sobre as mudanças constitucionais é finalmente lançado. Mas não foi adiantada que tipo de alterações estão a ser contempladas. O deputado Aung Kyi Nyunt, que apresentou a proposta de criação da comissão, disse que a Constituição “não está em linha com o sistema democrático”.

Os militares acusaram a Liga de não estar a agir de forma correcta, mas garantem que não estão contra mudanças constitucionais. “Eles podem emendar, mas têm de o fazer de acordo com os procedimentos”, disse o brigadeiro-general Maung Maung. “Que tipo de lei irá o comité analisar e quão abrangente será a autoridade desse comité?”, questionou.

A proximidade de novas eleições – previstas para 2020 – é um dos factores apontados para que o assunto tenha entrado na agenda política. “À medida que as eleições de 2020 começam a influenciar os cálculos políticos não é surpreendente que a LND queira mostrar progressos numa das promessas mais importantes”, disse à Reuters o analista Richard Horsey.

Suu Kyi tenta também recuperar alguma da credibilidade internacional perdida durante a crise dos rohingya. A ausência de acções concretas por parte da líder birmanesa para travar os abusos dos militares sobre a minoria muçulmana no estado de Rakhine – que obrigou a um êxodo sem precedentes – valeu-lhe críticas um pouco por todo o mundo, especialmente entre aqueles que viram a sua subida ao poder como o início de uma transição democrática na antiga colónia britânica.

A grande influência dos militares sobre os destinos da Birmânia obriga Suu Kyi a fazer um frágil equilíbrio para não pôr a perder os progressos feitos até hoje, e a alteração constitucional entra nesse cálculo, diz Horsey. “Esta é uma questão muito sensível para os militares. Criar uma comissão é uma forma muito prática de sinalizar uma intenção sem forçar de imediato a questão.”

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