O ataque cerrado das defesas à prova recolhida na Operação Marquês

Esta segunda-feira arranca a fase de instrução do processo em que o ex-primeiro-ministro José Sócrates está acusado de 31 crimes. A maior parte das defesas optou por não discutir os factos imputados na acusação, insistindo em várias alegadas ilegalidade que dizem invalidar a prova.

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José Sócrates, o principal arguido no processo: hoje começa a decidir--se quem vai ou não a julgamento JUAN MEDINA/REUTERS

Há quem compare a acusação da Operação Marquês a um texto “romanceado” e outros que garantem pura e simplesmente que se trata de uma história “mirabolante” que “não tem pés nem cabeça”. Mas a verdade é que a maioria dos 19 arguidos – entre os 28 acusados – que pediram a instrução, que arranca esta segunda-feira em Lisboa, dedicam grande parte da sua argumentação a fazer um ataque cerrado às provas recolhidas durante a investigação, pedindo que as mesmas sejam invalidadas.

Neste grupo encontram-se, por exemplo, o ex-primeiro-ministro José Sócrates, acusado de 31 crimes, que pede que o processo seja encerrado sustentando de forma genérica que “não cometeu qualquer crime”. Mas opta por não discutir, em concreto, qualquer um dos factos que lhe são imputados.

A parte substancial da sua argumentação é relacionada com uma questão levantada pela defesa do ex-ministro socialista Armando Vara, amigo de Sócrates, e que está relacionada com a forma como a Operação Marquês ficou nas mãos do juiz Carlos Alexandre, em Setembro de 2014. Nessa altura, entrou em vigor a nova organização judiciária e o Tribunal Central de Instrução Criminal (TCIC), onde o processo era acompanhado, passou de um para dois magistrados judiciais.

A atribuição do caso a Carlos Alexandre nessa altura “terá sido consumada por manipulação e viciação dos procedimentos legalmente previstos, não tendo sido realizado qualquer tipo de sorteio nem por qualquer modo respeitada a necessária aleatoriedade”, argumentam os advogados de Sócrates.

Tal, sustenta a defesa do ex-primeiro-ministro, invalida todas as provas recolhidas a partir de 9 de Setembro de 2014, quando a investigação, que durou mais de quatro anos, ainda não tinha 14 meses.

O objectivo desta “manipulação”, sustenta a defesa, era favorecer o Ministério Público (MP). “Através do acolhimento sistemático e sempre acrítico, pelo referido senhor juiz, de todas as promoções do titular do inquérito para as mais diversas e mais intrusivas, abusivas e injustificadas diligências de inquérito sem qualquer atenção ou respeito pelas mais elementares garantias e direitos individuais”, lê-se no requerimento de abertura de instrução apresentado por Sócrates. 

Esta questão tinha sido inicialmente levantada por Vara, que defende igualmente a “falta de legitimidade e de competência” de Carlos Alexandre e “a grave violação assim verificada das garantias de imparcialidade do juiz”.

Caberá a Ivo Rosa, o juiz de instrução titular do processo nesta fase, determinar se a entrada em vigor do novo mapa judiciário obrigava à redistribuição do processo, que estava nas mãos do juiz Carlos Alexandre desde 2013, quando havia apenas este magistrado no TCIC. E, se obrigava, se tal ocorreu de acordo com a lei.

Também a defesa do empresário Carlos Santos Silva, que na tese do Ministério Público era o testa-de-ferro de Sócrates, está a tentar anular a prova recolhida, embora com uma argumentação diferente.

A maioria das 256 páginas do requerimento de abertura de instrução de Carlos Santos Silva – a primeira vez que os arguidos reagem aos crimes que lhes são imputados pela acusação – é dedicada a escrutinar como foram realizados os processos de prevenção de branqueamentos de capitais, que deram origem à Operação Marquês. Estes processos resultam de alertas de bancos, que detectam indícios suspeitos em algumas operações bancárias e os reportam às autoridades.

“O arguido descobriu pela consulta dos autos ter sido investigado durante mais de uma década em processos administrativos que devassaram por completo a sua vida pessoal, societária e financeira, fazendo tábua rasa das exigências legais prescritas no Código de Processo Penal para a derrogação do sigilo fiscal e bancário”, afirma a defesa do empresário.

Os advogados de Santos Silva insistem que o inquérito devia ter sido aberto em Março de 2012, quando havia notícia de um crime. “Ao invés, o Ministério Público optou por desenvolver actos materiais de investigação no âmbito de acções – várias – de prevenção, mantendo este registo durante anos e anos, sem que o visado conhecesse esses actos e pudesse actuar nesses processos”, acusa a defesa, que lamenta não ter tido acesso ao conteúdo total destas acções preventivas. Tal só aconteceu recentemente, após um pedido aceite pelo juiz Ivo Rosa.

A defesa usa para reforçar a sua tese uma inspecção, concluída em 2014, ao Departamento Central de Investigação e Acção Penal – onde correu a investigação da Operação Marquês –, que levantou muitas dúvidas sobre a forma como eram tramitados estes processos de prevenção de branqueamento, as diligências que podiam ser feitas nesse âmbito e quem tinha competências para as fazer.

Para a defesa do alegado testa-de-ferro de Sócrates, o objectivo de manter a investigação no âmbito administrativo era “contornar” as garantias de defesa dos arguidos. Os advogados de Santos Silva alegam que há muito que o MP tinha conhecimento dos indícios que vieram, em Julho de 2013, a dar origem à Operação Marquês. “A abertura do inquérito com o fundamento de terem sido recolhidos indícios da prática, por parte de Carlos Santos Silva, do crime de fraude fiscal e branqueamento de capitais não passou de um artifício legal (...) para conseguir, por um lado, colocar sob escuta telefónica José Sócrates e, por outro, ter um processo (...) para despejar os dez anos de investigação através de processos administrativos”, sublinham.

Igualmente crítico da actuação do MP é o antigo líder da Portugal Telecom, Henrique Granadeiro, que se queixa de ter sido confrontado, em Fevereiro de 2017, com informação bancária da Suíça que só chegou ao processo meses mais tarde e diz não compreender como é que esses dados chegaram ao conhecimento dos investigadores.

Relativamente aos elementos bancários que sustentam a acusação contra si, Granadeiro diz que o Ministério Público violou as condições impostas pelas autoridades suíças para enviarem as informações e, por isso, os dados constituem um meio proibido de prova, logo são inválidos.

Não é a única vez que as autoridades de outro país são invocadas na Operação Marquês. O empresário luso-angolano Hélder Bataglia, acusado de dez crimes, garante que a “lei penal portuguesa não é competente” para o sancionar com os factos descritos na acusação. Relativamente a cinco crimes de branqueamento, a defesa de Bataglia sustenta que os mesmos já foram apreciados pelas autoridades angolanas, que arquivaram o caso, o que impede a Justiça portuguesa de os reanalisar. “Mesmo que se entenda que tais factos constituem crime à luz da lei angolana aplicável, sempre estaremos perante crimes amnistiados”, nota ainda.

Já a defesa do fundador do Grupo Lena, Joaquim Barroca, opta por analisar se os factos descritos na acusação preenchem os requisitos dos crimes imputados, concluindo pela negativa. Exemplo disso é a acusação por um crime de corrupção de titular de cargo político, que envolve José Sócrates, por este alegadamente ter favorecido o Grupo Lena através de diplomacia económica junto de líderes estrangeiros sobre quem tinha influência. Mas os advogados do empresário notam que “as decisões tomadas em países estrangeiros, relativas a negócios contratados por esses mesmos países, extravasam o conteúdo funcional do cargo de primeiro-ministro de Portugal”, não constituindo, por isso, o crime imputado a Barroca.

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