Do Jamaica à Caixa, dois Portugais

Num tempo em que se fala tanto das ameaças potenciais do populismo, seria difícil imaginar uma convergência de factores mais propícia a inflamar essas ameaças.

Dois temas têm estado em foco na actualidade portuguesa: os conflitos iniciados no bairro periférico conhecido por Jamaica e que se propagaram a outros locais (incluindo o centro de Lisboa) e a revelação de um relatório confirmando a suspeita de favorecimentos na concessão de empréstimos por diversas administrações da Caixa Geral de Depósitos (CGD). Além disso, uma notícia do Expresso adiantava ontem que um alerta da Caixa tinha estado na origem da Operação Marquês.

Aparentemente, estas notícias têm origem em dois mundos que tudo separa, desde o explosivo universo da exclusão social suburbana aos segredos, camuflagens e cumplicidades inconfessáveis envolvendo administradores do banco público e figuras do meio empresarial cultivando relações promíscuas com os circuitos de decisão política (num esquema extensivo, aliás, à banca privada mas com reflexos igualmente calamitosos nas contas do Estado). Só que esses dois mundos acabam por reflectir uma mesma realidade: a de um país escandalosamente desigual, dividido entre dois extremos – o das populações segregadas por motivos sociais, económicos e também raciais e o de uma casta privilegiada com acesso directo ou ínvio à mesa dos dinheiros públicos.

Num tempo em que se fala tanto das ameaças potenciais do populismo – e quando o Presidente da República corre, qual bombeiro de emergência, entre o Jamaica e Cabo Verde (país de origem de grande parte dos imigrantes residentes no bairro da margem sul), com o propósito de impedir a propagação de fogos –, seria difícil imaginar uma convergência de factores mais propícia a inflamar essas ameaças. Aliás, a amplificação desses fenómenos pelas redes sociais está também a estimular o (re)aparecimento de correntes extremistas, violentas e racistas que pareciam adormecidas, destilando as mensagens mais alarves de ódio e xenofobia. Finalmente, o espectáculo do último debate quinzenal no Parlamento, dando azo a posições caricaturais e histéricas, apenas contribuiu para deitar mais achas na fogueira.

Os riscos supostos e reais de uma imigração descontrolada – ou que o país não tem mostrado capacidade para absorver e integrar –, aliados à condescendência com o enriquecimento ilícito através dos favores concedidos por sucessivas administrações da CGD, antecipando ou confirmando os bastidores da Operação Marquês, constituem o típico caldo de cultura de uma nebulosa populista que tem vindo a avolumar-se. Entre as ameaças de violência física contra os imigrantes e seus defensores mais militantes ou as generalizações demagógicas do tipo "São todos corruptos!", visando o poder político e os administradores bancários suspeitos de venalidade, as fronteiras são cada vez mais ténues.

Alastra o perigo das generalizações e do maniqueísmo – à direita ou à esquerda, envolvendo imigrantes, polícias ou administradores bancários no seu conjunto. Nem todos os habitantes dos bairros problemáticos são meros anjos vítimas do racismo, nem todos os polícias são exemplares servidores da causa pública e insuspeitos de violência gratuita, tal como nem todos os gestores dos bancos estão acima de qualquer suspeita. Estas formulações ou o seu contrário não espelham a verdade mas apenas uma parcialidade mentirosa, grotesca e tóxica. Estamos fartos de saber que a realidade nunca é a preto e branco, mas aumenta perigosamente a tendência para pensarmos e agirmos como se ela assim fosse – até chegarmos ao ponto de termos um país duplamente partido ao meio. Aí teremos uma avenida aberta ao populismo.

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