Teatro Viriato: uma lança na descentralização cultural do país

O Centro de Artes do Espectáculo de Viseu existe há 20 anos: desde que começou a dançar, a 29 de Janeiro de 1999, nunca mais parou. Esta é a história bem-sucedida de um projecto que não fez escola em Portugal.

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A dança foi desde o início a âncora da programação do Teatro Viriato ADRIANO MIRANDA

Entra-se hoje no Teatro Viriato, na margem do centro histórico de Viseu, e é possível ler a história centenária desta casa entre o hall, os corredores, os bastidores e a bela sala “à italiana” restaurada na década de 1990: há a exposição dos cartazes de Cathrin Loerke, que têm feito a imagem gráfica dos programas mais recentes do Viriato (este ano, pela primeira vez, abarcando o ano inteiro); há as placas evocativas, as fotografias, as plantas, as cadeiras de palhinha e as notícias de jornal relativas ao primitivo Theatro Boa União, inaugurado em 1883; já lá fora, há ainda, paredes-meias, o Café do Teatro com azulejos retratando mais de uma dezena de figuras da história da literatura e da dramaturgia portuguesa, de Gil Vicente a Raul Brandão, de Camões a Branquinho da Fonseca, de Garrett a José Régio; e, do outro lado, a escola de dança Lugar Presente.

O Teatro Viriato é agora a sede do Centro de Artes do Espectáculo de Viseu (CAEV), uma associação criada em 1998 para responder ao programa de criação de vários centros regionais das artes do espectáculo lançado pelo então ministro da Cultura, Manuel Maria Carrilho, mas também ao projecto do coreógrafo Paulo Ribeiro, que quis sediar a sua companhia na cidade. O protocolo tripartido então celebrado juntava a associação, a Câmara Municipal de Viseu e o Ministério da Cultura (MC), fixando a Companhia Paulo Ribeiro, criada em Lisboa em 1995, como estrutura residente.

Vinte anos depois, o Viriato é ainda um caso singular, para não dizer mesmo único, no panorama cultural português. É uma marca inscrita no quotidiano viseense, está em rede com outras estruturas do país e mobiliza a vinda a esta cidade média do interior de artistas de todo o mundo, nos domínios da dança e das outras artes performativas, mas também da música e das demais disciplinas.

Essa história de sucesso começa no dia 29 de Janeiro de 1999 – faz esta terça-feira 20 anos. Um espectáculo de Ricardo Pais, Raízes Rurais, Paixões Urbanas, inaugurou a primeira temporada do renovado teatro. Não muito tempo depois, o próprio Paulo Ribeiro levava a Viseu Memória de Pedra, Tempo Caído, que no ano anterior estreara em Lisboa, na Expo’98. O coreógrafo instalou-se então na sua nova casa, sem que nenhuma das duas estruturas, Companhia Paulo Ribeiro e Teatro Viriato, perdesse a sua autonomia – algo que se mantém até hoje, e que de algum modo explica a perenidade do projecto.

“Nessa altura eu andava com a minha companhia em constante viagem por vários países, entre a Europa e os Estados Unidos e, por outro lado, fazia-me confusão ver Portugal ser só Lisboa”, recorda o coreógrafo ao PÚBLICO. Como tinha realizado uma residência artística em Viseu quando ainda estava ligado à Companhia de Dança de Lisboa, e aí tinha contactado com Ricardo Pais – que, com o programa Área Urbana, chamava a atenção para a importância da cultura urbana e contemporânea numa cidade ainda muito marcada pelas tradições e pela vivência rural –, decidiu propor a deslocalização da sua companhia para aquele lugar não exactamente muito destacado do mapa cultural do Portugal da década de 90. Viseu aceitou o desafio, e Paulo Ribeiro passou também a assumir a direcção e a programação do Viriato. 

Paulo Ribeiro no Teatro Viriato em 2002 MANUEL ROBERTO
Paulo Ribeiro no Teatro Viriato em 2008 ADRIANO MIRANDA
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Paulo Ribeiro no Teatro Viriato em 2002 MANUEL ROBERTO

O coreógrafo manter-se-á à frente do teatro viseense até 2003, ano em que é convidado a dirigir o Ballet Gulbenkian. Haverá de voltar em 2006, até que, uma década depois, recebe novo convite, desta vez para dirigir a Companhia Nacional de Bailado (CNB) – é substituído em 2016 por Paula Garcia, a actual directora artística, que, curiosamente, iniciara a sua carreira nesta área e em Viseu em 1998, como assistente de direcção de Paulo Ribeiro.

Uma plateia só para homens

Na estreia de Raízes Rurais, Paixões Urbanas, apesar da lotação esgotada, a sala do Viriato (com apenas 280 lugares) mostrava algumas clareiras. “Dada a lotação limitada da sala, a Câmara só enviou convites individuais, o que fez com que a plateia fosse unicamente constituída por homens; mas alguns preferiram ficar em casa a irem sozinhos”, recorda ao PÚBLICO, entre risos, José Fernandes, que desde o início se ocupa da gestão administrativa e financeira do CAEV.

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O Teatro Viriato tem uma lotação de 280 lugares ADRIANO MIRANDA

Passadas duas décadas redondas, todos os envolvidos na história do Teatro Viriato fazem um balanço positivo do projecto, e a prová-lo está o seu reconhecimento institucional – o CAEV viu sempre aprovadas as candidaturas aos apoios do MC e da autarquia –, mas também o seu enraizamento tanto a nível local como mesmo nacional: a média de ocupação da sala, nos últimos cinco anos, foi de 70%, e o centro mantém relações regulares com as escolas e associações da cidade e da região, além de integrar redes nacionais de programação como a 5 Sentidos e a Performart.

“O Viriato é um projecto simbólico de transformação da região, e isso vê-se pelas relações que também desenvolvemos com o público e com artistas e projectos da cidade”, diz Paula Garcia. “Além da boa recepção aos nossos espectáculos, nunca ficamos aqui fechados: estamos representados em vários conselhos de escola, além de que mantemos um contacto permanente com o tecido artístico nacional através das várias redes de trabalho”, acrescenta a directora.

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Paula Garcia é a actual directora artística do Teatro Viriato ADRIANO MIRANDA

Paulo Ribeiro também considera "absolutamente cumprido" o seu projecto inicial, considerando que, no essencial, ele “continua em vigor”. “Tratava-se de criar uma programação com uma dimensão local, nacional e internacional, na dança como no teatro e na música, e de abri-la a novos artistas”, resume o coreógrafo, que sente ter havido “uma continuidade” entre a sua direcção e as dos que o substituíram – além de Paula Garcia, também Miguel Honrado dirigiu o Viriato, no caso entre 2003 e 2006, um mandato marcado pelo lançamento do Serviço Educativo e por um certo reajustamento do projecto.

“O Miguel Honrado continuou o trabalho do Paulo Ribeiro, mas imprimiu uma mudança na relação com os artistas; ele é um programador que arrisca bastante e que esteve na génese de muitas redes nacionais e internacionais”, diz Paula Garcia.

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Miguel Honrado no Teatro Viriato, que dirigiu entre 2003 e 2006 NELSON GARRIDO

O programador, que foi secretário de Estado da Cultura até Outubro, acrescenta que a chave do sucesso do Viriato, além da programação e das criações ali promovidas, radica igualmente na decisão original de assegurar a independência do CAEV e da Companhia Paulo Ribeiro. “O Viriato cumpriu plenamente e é uma referência, tanto do ponto de vista artístico como pela diversidade da programação, e também por manter uma companhia residente com autonomia sempre garantida – as duas organizações estão associadas por motivos sobretudo artísticos”, especifica.

Já sobre o facto de o projecto dos centros regionais das artes e espectáculos ter ficado na gaveta das políticas culturais – o CAEV sucedeu à criação do Centro Dramático de Évora (Cendrev) e os dois tornaram-se exemplos sem continuidade neste domínio –, Miguel Honrado considera que o “modelo não teve continuidade talvez por falta de regionalização”. “Era difícil impor estas aspirações junto dos poderes municipais, que em Portugal ganharam um grande peso histórico”, diz o ex-governante.

"Um privilégio"

Quando Paulo Ribeiro voltou a sair em 2016 para abraçar o projecto da CNB – do qual, entretanto, se demitiu no Verão passado –, decidiu deixar a sua companhia entregue à dupla São Castro-António Cabrita. “Foi uma escolha natural: trabalhei imenso com ambos, principalmente com a São, desde o Ballet Gulbenkian, e, além de serem bons bailarinos e coreógrafos, reconheço-lhes capacidade e uma linguagem própria”, justifica o coreógrafo.

São Castro e António Cabrita conduzem o PÚBLICO ao estúdio da companhia no topo do edifício do Viriato, de onde se avista a Sé Catedral de Viseu. “O convite do Paulo [Ribeiro] foi um privilégio”, dizem ambos, que agradecem a confiança manifestada pelo coreógrafo e a oportunidade que lhes foi oferecida de deslocalizarem o seu trabalho de Lisboa para Viseu, onde já se sentem em casa. “É uma cidade que nos dá liberdade de tempo, e onde nos cruzamos com artistas, com colegas, mais do que em Lisboa”, aponta António Cabrita, referindo a qualidade de vida, também familiar e social, que a pequena cidade lhes concede.

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São Castro e António Cabrita assumiram em 2016 a direcção da Companhia Paulo Ribeiro ADRIANO MIRANDA

Em 2017, os dois bailarinos e coreógrafos estrearam em Viseu Um Solo para a Sociedade; este ano, convidaram o coreógrafo brasileiro Henrique Rodovalho a criar, para a companhia, a peça Um Encontro Provocado. Não pararam de fazer circular pelo país outras peças da sua carteira criativa. “A proposta que apresentámos ao Paulo foi aproveitar a estrutura e diversificar as linguagens artísticas, fazendo convites a novos coreógrafos, nacionais e internacionais”, explica São Castro.

Foi já com esse programa que a companhia estreou, no último fim-de-semana, a criação Todos, Alguém, Qualquer um, Ninguém, co-assinada por São Castro, António Cabrita e Luiz Antunes.

Normalmente, a Companhia Paulo Ribeiro apresenta no Viriato duas produções novas por ano, estando a segunda de 2019 já anunciada para 19 e 20 de Setembro: Last, em que a dupla contará com música ao vivo pelo Quarteto de Cordas de Matosinhos.

Paralelamente, outras produções serão levadas a outros palcos e espaços do país – é o caso da instalação holográfica Box 2.0, em que os autores homenageiam quatro nomes fundamentais da dança portuguesa contemporânea, Clara Andermatt, Olga Roriz e Rui Horta, além do próprio Paulo Ribeiro, e que desde este fim-de-semana e até 14 de Abril estará em cena no Teatro Aveirense –, dando sequência às itinerâncias que são também uma marca da companhia e do Viriato.

Sobre a programação geral do teatro para este ano, mais densa do que habitualmente, Paula Garcia explica ter tido a preocupação de que ela fosse “quase um espelho do que têm sido os últimos 20 anos do Viriato”: “Uma casa que está em Viseu, que olha para os artistas que residem cá, que tem uma relação directa com os públicos específicos e com os artistas residentes de âmbito nacional, e que tem de ser transformadora na cidade.”

Num teatro que cada vez aposta mais na produção, na co-produção e no acolhimento de artistas residentes (para o quadriénio 2018-21 foram escolhidos João Fiadeiro, Joana Craveiro e Henrique Amoedo), de uma forma simultaneamente “desafiadora e aberta ao diálogo”, a directora chama a atenção para alguns momentos, como o espectáculo Textures & Lines, com o Drumming e o duo de música electrónica Joana Gama-Luís Fernandes (30 de Maio); as reposições de um projecto que considera "simbólico para os serviços educativos em Portugal", a exposição-acontecimento A Caixa para Guardar o Vazio, de Fernanda Fragateiro (19 a 31 de Outubro); e também o regresso da histórica criação de Vera Mantero e Rui Chafes, Comer o Coração em Cena (15 de Novembro).

Antecipando a data oficial da reabertura do Viriato, o presidente da Câmara Municipal de Viseu, Almeida Henriques, decidiu promover esta segunda-feira uma mesa-redonda reunindo figuras que marcaram a história do CAEV, nomeadamente Manuel Maria Carrilho, Ricardo Pais, Paulo Ribeiro e Paula Garcia. A sessão está marcada para a 18h, e terá moderação do jornalista Pedro Santos Guerreiro.

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