Há amor e arte no Bairro da Jamaica

Olha-se para as periferias como se fossem zonas de excepção, validando-se assim que é algo que deve ser cercado para melhor ser domado, e pelo caminho apaga-se que são também lugares de afectos e produção cultural.

As descrições não variam muito. Prédios inacabados. Habitações sem segurança e húmidas. Um ambiente global de pobreza, lutas entre grupos rivais e conflitos com a polícia. É assim que por norma são nomeados no espaço público os chamados bairros problemáticos da Lisboa metropolitana. São apenas notícia por razões tristes. O estigma é tal que os taxistas se recusam a transportar pessoas para lá e os moradores ocultam a residência quando vão a repartições ou procuram emprego.

Diaboliza-se esses territórios. Constrói-se o medo e a ideia de ameaça. Olha-se para essas áreas como se fossem zonas de excepção. Valida-se que é algo que deve ser cercado para melhor ser domado. Uma espécie de fronteira de grades invisíveis que por vezes é sitiada pelas forças de segurança, ampliando o sentimento de que não se pertence ao mundo que está para lá daquelas barreiras artificiais. Quem lá vive não nega que existam conflitos e tensões. Mas sentem-se injustiçados pelo olhar simplista. A começar por essa noção de que serão lugares habitados por africanos, luso-africanos, afro-portugueses, lusófonos ou outras nomenclaturas, algumas até na tentativa de legitimar a diversidade, estão de imediato a instituir a diferença. A maioria é portuguesa negra. Só isso.

Estive no Bairro da Jamaica em 2013. Pude constatar que é um espaço físico degradado que é em si mesmo uma agressão a quem vive nele e uma vergonha para o país. Mas vislumbrei mais. Senti expectativa, esperança, afecto, amor e redes de vizinhança que no centro vão rareando. E vi arte, engenho, criatividade e produção de cultura, que é algo que por norma não chega ao espaço público, mais interessado em antagonizar do que compreender o que se passa ali. O meu objectivo era falar com jovens portugueses afectos à editora Príncipe Discos, daquele e de outros bairros da periferia de Lisboa, que fazem música. E a verdade é que desde então têm tido um percurso consistente no universo musical, tendo-lhes sido mais fácil serem credibilizados na Europa do que em Portugal, o que só por si é significativo do desencontro com a nossa história pós-colonial.

Como em tantos outros contextos, onde existe gente defraudada, empobrecida e humilhada, ali a política quase não entra. Era preciso ouvir em vez de impor. Era necessário que os discursos não fossem no sentido do adormecimento das consciências, como fez Marcelo Rebelo de Sousa, ao dizer que estávamos perante ocorrências que eram “casos específicos” e que não se “podia generalizar”, quando o que se está a travar nos últimos tempos em Portugal é uma luta contra a história, condenação de comportamentos que têm um passado e se perpetuam no presente, uma luta onde todas as desigualdades — raciais, de classe, de género, ou de acesso à educação, ao saber ou ao poder — estão interligadas.

Este parece um país adormecido, com centenas de jovens dos bairros das periferias a fazerem história na última segunda-feira, através de uma manifestação improvisada na Avenida da Liberdade. Mas falhou o suporte dos que continuam a achar que não existe racismo em Portugal. Ora, o grande debate a fazer não é constatar o óbvio. Claro que existe racismo. O que há a fazer é identificar as muitas formas como ele se manifesta e discutir modelos no sentido de tentarmos compreender, delimitar e circunscrever preconceitos e outras formas de segregação, sejam elas micro ou macro (emprego, habitação, educação, acesso à cidadania) para que não se criem subclasses marginalizadas. O contrário disto são os habituais apelos à tolerância e à nossa boa consciência. Percebo-os. Mas nitidamente, no contexto actual, de nada valem.

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