“Há várias Jamaicas”, lembrou-se na manifestação no Seixal contra a violência policial e racismo

Protesto foi motivado pelo confronto entre polícia e moradores do Bairro da Jamaica, no domingo. E é uma denúncia à “forma claramente intimidatória, racista e violenta com que as ‘forças de autoridade’” tratam quem lá vive, dizem os organizadores.

Protesto contra violência policial: "A nossa vitória final é a igualdade” Vera Moutinho, Rita Marques Costa

Ponto de encontro: Câmara Municipal do Seixal. O protesto foi organizado nas redes sociais. Por volta das 13h, mais de 400 utilizadores já tinham confirmado a presença na página do Facebook A Voz da Mãe Preta, que convocou o evento. Cerca das 17h, pelo menos uma centena de pessoas tinham comparecido no local. 

Entre posts de manifestantes e na descrição que acompanhava o evento fizeram-se vários apelos à participação pacífica no protesto. A organização pediu respeito pelas indicações dadas pelas autoridades “em todos os momentos”; calma; “não fazer ameaças ou utilizar linguagem ofensiva contra os presentes”; e que se mantivesse “o respeito pela propriedade pública e privada e evitar quaisquer actos de destruição ou danificação”. A polícia instalou grades antimotim à entrada do edifício sede da autarquia e mandou elementos da brigada de intervenção, mas ninguém se chegou a aproximar. 

O objectivo era denunciar a “forma claramente intimidatória, racista e violenta com que as ‘forças de autoridade’” tratam esta comunidade, dizem os organizadores. E é por isso que pediram que, “independentemente da origem, cor de pele e morada”, se participasse “nesta mobilização contra a violência sistemática e por um tratamento digno das instituições do Estado português”. 

Entre as várias intervenções que foram acontecendo ao longo da tarde, Manuel Vicente, 51 anos, trouxe o testemunho de um morador do Bairro da Jamaica. “A polícia quando chega à Jamaica é logo à cacetada”, denunciou. Entre aplausos deixou uma sugestão: “se os polícias são sempre bons e os moradores são sempre maus”, que se adopte um sistema de câmaras de vigilância nas suas fardas — algo que já está em estudo pelo Ministério da Administração Interna.

Daniel Rocha
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Daniel Rocha

Mesmo assim, apesar de ser o caso mais próximo da memória colectiva, o episódio de domingo, garantiram vários manifestantes, não é exclusivo nem desse dia nem do Bairro da Jamaica. Há “várias Jamaicas em Portugal”, afirma José Pina, 42 anos. Nasceu em Portugal, em Lisboa, e vive no Bairro das Fontainhas, na Amadora. Foi ao protesto porque quer um futuro melhor para os três filhos. “Há um embargo de oportunidades”, assegura. Além disso, há falta de representatividade. “Quero ver mais negros na polícia”, exemplificou. “Não podemos alimentar o ódio num país com tanta diversidade.”

Foi também pelos dois filhos, com oito e 13 anos, que José Rosário, 39 anos, se foi manifestar. “Queria um país onde os meus filhos não tivessem de ser escrutinados pela sua cor. Continuo a achar que há uma série de atropelos à nossa condição”, lamentou. E fala com os filhos sobre racismo? “Sempre falei”.

Aos 36 anos, Alfredo Costa também garante que “existe racismo institucionalizado em Portugal”. Sobre o episódio no Bairro da Jamaica diz que “não foi a primeira vez e não vai ser a última”.

"Um acto de cidadania"

Se a violência se repete tanto então por que é que o episódio filmado no domingo passado ganhou tanta visibilidade? Teve a ver com a própria “natureza do movimento”, que está a mudar, diz Mamadou Ba. O activista, que tem sido alvo de ameaças, justifica também essas diferenças com o facto da população mais jovem se tornar “protagonista das suas histórias” e com a vulgarização das redes sociais.

Entre o grupo mais ou menos disperso, Cláudia Tavares, de 25 anos, e Elisabete Lopes, de 23, são exemplo desses jovens. Estiveram no protesto de segunda-feira, que, garantem, tinha tudo para ser pacífico, não fossem as investidas da polícia que acabaram por assustar os jovens. Quanto às razões que as levaram a manifestar-se, apontam o racismo e a falta de confiança na polícia. "Se eles não nos protegem quem vai proteger?" 

“Nem menos, nem mais, direitos iguais” e “Racismo, fascismo, não passaram” foram algumas das palavras de ordem ouvidas durante o projecto. 

Mamadou Ba, dirigente da SOS Racismo, que não esteve envolvido directamente na organização do protesto, lembrou que “ninguém está a promover a violência”. A manifestação, garantiu, é “um acto de cidadania”. 

"O activismo não pode viver só da partilha de posts nas redes sociais", defendeu Pedro Filipe, 34 anos. E foi por isso que se foi manifestar no Seixal. 

Na página do evento no Facebook foi ainda publicado um manifesto subscrito por várias organizações — Afrolis; Colectivo de Acção Imigrante e Periférica; Consciência Negra; Djass - Associação de Afrodescendentes; Em Luta; Associação de mulheres negras, africanas e Afrodescendentes em Portugal (FEMAFRO); Movimento Alternativa Socialista (MAS); Nu Sta Djunto – Estamos Juntxs; Plataforma Gueto; SOS Racismo. “A brutalidade policial é um fenómeno com o qual nós, negras e negros em Portugal, estamos escandalosamente familiarizados”, lê-se no manifesto. “O caso de violência policial no bairro da Jamaica não é uma excepção". Já neste texto se sublinhava que "há várias Jamaicas nas periferias deste país, onde a população tem constantemente a sua integridade física ameaçada por agressões desproporcionadas e intervenções musculadas.”

Associação de moradores e família Coxi fora do protesto

A manifestação surge na sequência do confronto entre polícia e moradores do Bairro da Jamaica, no Seixal, no domingo passado. A família Coxi e outros moradores do bairro tinham-se juntado para celebrar um aniversário. A comemoração tomou um rumo indesejado quando, na sequência de desentendimentos entre duas mulheres, a polícia foi chamada. O vídeo do episódio, amplamente partilhado nas redes sociais, mostra agressões entre polícias e moradores. “Quando chegaram eles nem perguntaram o que se passava. Vieram para bater”, dizia Vanusa Coxi ao PÚBLICO. Hortêncio Coxi, suspeito de atirar uma pedra a um polícia, acabou detido.

Em comunicado, a Associação para o Desenvolvimento Social de Vale de Chícharos sublinha que nem os moradores do bairro nem a família Coxi estiveram envolvidos na organização da manifestação de 21 de Janeiro — onde houve confrontos entre polícia e manifestantes e que culminou em quatro detenções. E garante que também não organizou o protesto desta sexta-feira. “Tudo o que queremos de momento é retomar as nossas rotinas diárias e seguir em frente”, afirmam.

Mesmo assim, a família Coxi surgiu num vídeo partilhado na página do evento a apelar a que as pessoas se manifestem “pacificamente”.

“Peço à população atenção nas manifestações que estão fazendo. Eu espero que as façam pacificamente, porque a minha religião, os mandamentos, não permitem agressão. Se houver agressão, essa situação recai sobre a minha cabeça. Para que isso não aconteça, peço, por favor, façam pacificamente manifestações. Têm direito de fazer, a lei permite isso, mas não havendo vandalismo. Por isso, espero que tudo aquilo que se passou fique assim”, dizia Fernando Coxi, de 63 anos, pai de  Hortêncio Coxi, o homem que acabou detido no domingo.

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