Cassandra foi a Marte à boleia da NASA — sem sair do deserto americano

A NASA construiu um módulo simulador do habitat de Marte nos confins do deserto norte-americano. A fotógrafa Cassandra Klos descobriu-o e acabou por embarcar "numa viagem a Marte" que deu origem a Mars on Earth, uma série fotográfica que nos revela uma realidade de acesso restrito.

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Todos nós, que vivemos no presente e temos um período de vida finito, nos podemos questionar se algum dia teremos o privilégio de assistir aos primeiros passos de um ser humano em Marte. Cinquenta anos após a aterragem na Lua — o aniversário celebra-se a 20 de Julho de 2019 — mantemos a esperança, seguros de que há pessoas que dedicam as suas vidas a essa missão. São os cientistas quem mais contribui, mas há também, no mundo, quem não tenha uma relação oficial com ciência e colabore, de forma expressiva, para a concretização do objectivo universal de pisar solo marciano.

Em Julho de 2014, a fotógrafa norte-americana Cassandra Klos soube, através da conta do Twitter do astronauta canadiano Chris Hadfield, que um grupo de seis pessoas estaria prestes "a regressar à Terra", após seis meses de expedição "em Marte". Tratava-se, evidentemente, de uma simulação —​ facto que não foi encarado, por Cassandra, como uma desvantagem. Pelo contrário. Apaixonada pelos conceitos de verdade e verosimilhança na fotografia, a norte-americana viu, neste cenário, uma oportunidade. Descobriu, então, que no interior do vulcão Mauna Loa, no Havai, a aproximadamente 2500 metros de altitude, a Agência Espacial Norte-Americana (NASA) instalou um módulo simulador do habitat de Marte, conhecido por HI-SEAS. Este está longe de ser o único: existem vários espalhados pelo planeta Terra — e até um português já foi um dos residentes​. Mas qual é o objectivo da sua existência?

Jeffrey Kluger, RAVEN I, 2016 ©Cassandra Klos
Paul Bakken of MDRS 155, 2015
"Little One That Could", 2016 ©Cassandra Klos
"Surveying", 2017 ©Cassandra Klos
Jackelynne Silva-Martinez, MDRS 155 (Life of Mars), 2015 ©Cassandra Klos
International Space Station, Johnson Space Center, 2017 ©Cassandra Klos
John Kennard, HERA XIII, 2017
Carmel Johnston, HI-SEAS IV (EVA #154), 2016 ©Cassandra Klos
©Cassandra Klos
"Utopia Planitia", 2016 ©Cassandra Klos
"Soil Collection", 2016 ©Cassandra Klos
Christiane Heinicke, HI-SEAS IV, 2016 ©Cassandra Klos
©Cassandra Klos
EVA #42, 2015
Auto-retrato no interior de Mars Quarters, 2017
©Cassandra Klos
Juan in the Stars (MDRS 181), 2017 ©Cassandra Klos
Fotogaleria
Jeffrey Kluger, RAVEN I, 2016 ©Cassandra Klos

Estes locais são denominados “habitat análogo​ de Marte”. Em locais cujo ambiente se assemelha ao daquele planeta — áridos, rochosos, sem vestígios de vida — são instalados módulos que servem de base a um grupo de astronautas análogos (pessoas sem formação científica que substituem, em ambiente de simulação, o papel do astronauta). No interior, e em seu redor, decorrem missões que visam compreender e estudar o comportamento humano em ambiente marciano. A NASA pretende, assim, determinar o que é necessário para manter um grupo restrito de pessoas feliz e saudável durante uma expedição ao planeta vermelho. “O foco primário é estudar as dinâmicas de grupo, os comportamentos, os papéis e a performance individual, entre outros aspectos da vida a bordo de um módulo espacial”, pode ler-se no site da NASA. A resistência ao stress, à depressão, ao isolamento e à frustração são características-chave num futuro visitante de Marte. 

Estar em Marte na Terra

As imagens que compõem Mars on Earth foram capturadas, entre 2015 e 2019, em vários pontos dos Estados Unidos. “Sobretudo em habitats análogos de Marte”, acrescenta, ressalvando as imagens que realizou em diversas e "altamente restritas" instalações da NASA. “Mars Desert Research Station (MDRS) em Hanksville, Utah; Hawai'i Space Exploration Research Analog and Simulation (HI-SEAS) no Havai; e Human Exploration Research Analog (HERA) no Centro Espacial de Houston, Texas”, especifica, em entrevista ao P3.

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A selecção dos candidatos, por parte das organizações que gerem os habitats, é muito rigorosa. “HI-SEAS e HERA são muito exigentes. Todos os participantes das suas missões têm formação na área de ciências, tecnologia, engenharia ou matemática", explica. A MDRS, ao abrigo da qual Cassandra participou em duas missões, é mais aberta. Durante quatro semanas, no total, integrou as equipas Crew 155 e Commander 181 (a última composta exclusivamente por artistas). "Inicialmente, candidatei-me porque queria compreender a experiência de viver numa dessas simulações", explicou ao P3. "Uma coisa é registar a experiência de outras pessoas, outra é estar nos seus sapatos e compreender as dificuldades e o orgulho que sentem por pertencer a uma equipa [de astronautas análogos]."

Entre os colegas de simulação, Cassandra encontrou militares, estudantes, escritores. Todos queriam ser, de algum modo, responsáveis pelo impulsionamento da exploração espacial, explica. “Alguns gostariam de se tornar astronautas, mas a maioria percebeu que não estará no topo da lista quando chegar o momento de enviar alguém em missão. Assim sendo, sabem que esta é a experiência mais próxima da vida em Marte que algum dia poderão experienciar.” 

“Sentes-te a abandonar a Terra”

“Quando estás dentro da simulação, sentes mesmo que estás a abandonar a Terra”, descreve. Após a entrada no módulo, dá-se a contagem decrescente. “Três, dois, um...” Colunas de som na base da estrutura rugem, simulando a descolagem. Ecrãs, que servem de janelas, acompanham o afastamento do módulo da superfície terrestre. Seguem-se semanas ou meses no interior de uma estrutura de 140 metros quadrados de área, montada sobre uma paisagem desértica e inóspita nos confins do deserto norte-americano.

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“Deixas para trás a tua família. Passas a ter contacto limitado com o exterior e uma fraca ligação à Internet. (...) É uma experiência desconfortável – especialmente se fores millennial, como eu”, refere. “Estar ‘desligado do mundo’ pode parecer saudável, mas quando comes apenas comidas liofilizadas e tens de submeter-te a um regime de exercício físico obrigatório, o teu corpo começa a ressentir-se.” Além disso, foi um desafio para Cassandra fotografar a partir do interior de um fato espacial. “Eu fui apenas uma participante entre muitos, não tive qualquer privilégio por ser fotógrafa”, explica. “Cumprir todas as regras da simulação pode secar toda a tua criatividade.”

Dentro dos habitats, esbate-se a linha que separa a ficção da realidade. Essa é uma característica que interessa a Cassandra, enquanto fotógrafa. Gosta de fotografar realidades que suscitem dúvidas de interpretação. Esse jogo de leitura é uma marca distintiva da sua assinatura, que já suscitou o interesse de publicações como The Atlantic, TIME Magazine ou Wired.

Por ora, resta-nos desejar que, um dia, Cassandra possa, efectivamente, confundir-nos ao fotografar realmente em Marte.

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