Um país, dois Presidentes: Venezuela leva a sua fractura ao extremo

Em dia de manifestações massivas por todo o país, o líder do parlamento, Juan Guaidó declarou-se Presidente interino e anunciou um “governo de transição” à revelia de Maduro. Trump é aliado de peso, mas não é o único.

Foto
Juan Guaidó prometeu eleições livres para a Venezuela EPA/Miguel Gutiérrez

A Venezuela inaugurou nesta quarta-feira um novo e marcante capítulo na sua História recente, cujos contornos são imprevisíveis. Inspirado pelos milhares de venezuelanos que encheram as ruas de dezenas de cidades do país para protestar contra o regime, o até há pouco tempo desconhecido presidente da Assembleia Nacional, Juan Guaidó, declarou-se Presidente interino e assumiu a missão de resgatar a Venezuela das mãos do “usurpador” Nicolás Maduro. O gesto contou com o apoio de peso de Donald Trump mas foi repudiado pelo dirigente chavista. Teme-se um braço-de-ferro.

“Juro assumir formalmente as competências do executivo nacional como Presidente interino da Venezuela para alcançar o fim da usurpação, um Governo de transição e eleições livres”, prometeu Guaidó perante milhares de apoiantes apinhados numa praça de Caracas. “Não iremos permitir que este grande movimento de esperança e de força nacional se esvazie”, afiançou.

Minutos depois da declaração dramática do presidente do Parlamento venezuelano, de 35 anos, Trump confirmou o que já corria pelos media norte-americanos desde manhã e anunciou o apoio total dos Estados Unidos à sua tomada de posição. 

Num comunicado divulgado pela Casa Branca, Trump defendeu que a Assembleia Nacional é o único órgão político da Venezuela “legítimo”, instou “outros Governos do Hemisfério Ocidental” a juntarem-se-lhe no reconhecimento do novo Presidente interino e prometeu continuar a valer-se “de todo o peso do poder económico e diplomáticos dos EUA” para ajudar a “restaurar a democracia venezuelana”. 

“Os cidadãos da Venezuela já sofreram demasiado às mãos do regime ilegítimo de Maduro”, acrescentou o Presidente dos EUA no Twitter.

O respaldo de Washington abriu caminho para uma avalanche de apoios a Juan Guaidó, de países como o Brasil, o Canadá, a Colômbia, o Chile, a Argentina, e também da Organização de Estados Americanos. A União Europeia, em comunicado, preferiu não se comprometer, reforçando o que há havia dito: "A UE apoia totalmente a Assembleia Nacional enquanto instituição democraticamente eleita e cujos poderes devem ser imediatamente restaurados e respeitados".

Contra a corrente latino-americana, porém, o México de López Obrador manteve o seu apoio a Caracas, tal como o boliviano Evo Morales. Recep Tayyip Erdogan, Presidente da Turquia, também está na lista dos que o apoiam, garantiu Maduro.

“Aqui ninguém se rende”

Do lado chavista – que também juntou milhares de apoiantes na capital –, a pretensão de Guaidó foi naturalmente desprezada. Na varanda do Palácio de Miraflores, Maduro elencou todos os “golpes de Estado” na América Latina promovidos pelas “garras do imperialismo” dos EUA, deu 72 horas a todo o corpo diplomático norte-americano para abandonar o país e questionou: “Pode qualquer um autoproclamar-se Presidente? Ou é o povo que o elege?”. 

A resposta foi dada pelo próprio, acompanhada por uma garantia: “Aqui ninguém se rende. Vamos ao combate!”

Num país afogado numa crise política, económica, social e humanitária sem fim à vista, e cujas ruas voltaram esta quarta-feira a ser palco de protestos, violência urbana e de confrontos entre manifestantes anti-Maduro e forças de segurança do regime – pelo menos quatro pessoas morreram – a nova arquitectura política, de dois presidentes, não augura nada de bom para a saúde do ambiente social venezuelano.

A estratégia de Maduro passa, para já, por chamar a Justiça a “exercer o seu papel” para “preservar o Estado e a ordem democrática” e por encorajar os venezuelanos ao “combate popular permanente”. Do lado de Guaidó, que se apressou a contrariar o fim das relações diplomáticas com os EUA, o plano é refutar quaisquer decisões políticas do seu opositor.

“Apelo a que ignorem qualquer ordem ou disposição que contradiga o firme propósito do poder legítimo da Venezuela”, pediu, pouco depois do discurso de Maduro.

Oposição com novo fôlego

A oposição ao chavismo, representada no Parlamento pela Mesa da Unidade Democrática (MUD), vinha perdendo força e influência nos últimos anos. Apesar da conquista da maioria dos deputados na Assembleia Nacional, em 2015, a plataforma política não conseguiu fazer uso das competências próprias daquele órgão do Estado, muito por culpa do braço-de-ferro travado com o Governo.

Agravada pelo colapso económico do país – totalmente dependente do preço do barril de petróleo – e pelo aumento extremo da pobreza, da desigualdade e da violência, a disputa entre o órgão legislativo e o detentor do poder executivo bloqueou a Venezuela e levou o Presidente a avançar para deslegitimação do Parlamento, primeiro pela via legal e depois pela via eleitoral.

Em plena vaga de protestos e de confrontos, nos primeiros meses de 2017 – da qual resultaram pelo menos 120 mortos e centenas de feridos –, Maduro abriu caminho para a criação de uma Assembleia Constituinte, cuja eleição foi boicotada pela oposição.

O novo órgão foi preenchido por membros e simpatizantes do Partido Socialista Unido de Venezuela e reconhecido pelo regime como o real depositário das competências da Assembleia Nacional. Que acabou esvaziada na sua relevância e no seu poder.

O golpe foi duro para a MUD, que se perdeu em disputas interpartidárias por causa das divergências sobre o caminho a seguir. E Maduro aproveitou para cavalgar essa onda de pessimismo, agendando eleições presidenciais para Maio de 2018.

Mas a oposição e um número alargado de países e organizações internacionais, incluindo a UE, denunciaram a interdição de candidaturas de figuras de proa da MUD, a ilegalização de alguns dos partidos que a compõem e a retenção de subsídios sociais como mecanismo de controlo e chantagem aos venezuelanos, entre outras irregularidades identificadas durante a campanha e a própria eleição. 

A MUD rejeitou participar, uma vez mais, na “grande fraude” e não reconheceu o seu resultado – vitória de Maduro. 

A cerimónia de tomada de posse do líder socialista, no passado dia 10, acabou boicotada por praticamente toda a comunidade internacional e pela oposição, que o rotulou de “usurpador”. Mas ofereceu ao mais recente presidente da Assembleia Nacional – que chegou ao cargo no âmbito do sistema de liderança rotativo definido pela MUD e à falta de outros dirigentes mais conhecidos do seu partido, detidos ou exilados – a possibilidade de impulsionar um novo ciclo de combate político.

O respaldo da UE e dos EUA foi decisivo para o sucesso da mensagem de Juan Guaidó, cujos alicerces não destoam em relação aos últimos anos. A oposição acusa o regime de repressão, perseguição e detenção de opositores políticos, da violação continuada de direitos humanos e da politização dos tribunais e das autoridades eleitorais.

Maduro, por seu lado, aponta o dedo ao “intervencionismo imperialista” norte-americano e rejeita responsabilidades directas do Estado pela deterioração da economia, pela hiperinflação galopante, pela escassez de alimentos e de medicamentos, pela fuga de milhões de venezuelanos e pelos índices elevados de violência urbana.

Será em redor destas duas visões discrepantes para uma mesma realidade social e económica, desequilibrada em todos os sentidos, que se desferirão os próximos golpes dos dois presidentes. Que apenas coincidem numa coisa: o verdadeiro “usurpador” do poder na Venezuela é outro que não o próprio.

Sugerir correcção
Ler 52 comentários