O “oásis” e os “casos pontuais”

Somos uma sociedade racista como as outras, mas que o nega mais veementemente que a maioria e na qual se acusa de “incitação à violência” quem denuncia a própria violência racial.

Há anos que voltámos à velha tendência de, perante o tumulto do resto do mundo, nos imaginarmos um oásis de decência e de céu azul no meio da tormenta do avanço do racismo e do nacional-populismo por essa Europa, esse mundo, fora. É 1940 outra vez. Este discurso, que julga que, quando vips escolhem Portugal para viver, se confirma que somos os campeões da “doçura de costumes”, e que sintoniza com as velhas convicções lusotropicalistas do país-exceção que não é e nunca foi racista e cujo colonialismo nem bem colonial teria sido, não é simplesmente uma manifestação de autocondescendência. Ele opera como uma pesada laje censória que se abate sobre toda a chamada à realidade todas as vezes que a evidência da discriminação e da violência racial nega o oásis.

Por coincidência ou não, na segunda-feira passada, um dia antes de vermos as imagens da enésima cena de violência indiscriminada praticada por polícias em bairros onde se guetizam minorias (negros, como no caso do Jamaica, no Seixal, ou ciganos), a secretária de Estado para a Cidadania e a Igualdade dizia à Lusa que "os próprios cidadãos e cidadãs têm de ser mais inquietos e solidários com as vítimas no sentido de desconstruir muitas narrativas que ainda existem e que culpabilizam as próprias vítimas". A secretária não falava das vítimas da violência racial – mas podia. Ela reagia, e de forma correta, ao relatório de um grupo de peritos do Conselho da Europa que, avaliando o caso português, elogia os "progressos significativos" contra a violência contra mulheres, mas que, exatamente como acontece com a violência racista, denuncia a muito baixa taxa de condenações, o que propicia uma evidente falta de confiança das vítimas na Justiça, o que leva que grande parte delas não denunciem as agressões a que são sujeitas por receio a que estas fiquem impunes e que paguem um preço suplementar por denunciarem.

É que, nestas questões que agora é prática atirar para o canto do “politicamente correto”, Portugal tem mesmo um problema com o Conselho da Europa. Em outubro, a Comissão Europeia contra o Racismo e a Intolerância (ECRI), também do Conselho da Europa, voltou a sublinhar o que já dissera em relatórios anteriores e que continua por solucionar: “São inúmeras as acusações graves de violência racista cometida por agentes da polícia. Contudo, nenhuma autoridade reuniu sistematicamente estas acusações e procedeu a um inquérito eficaz para determinar se são ou não verdadeiras. Isto levou ao medo e falta de confiança na polícia, particularmente entre as pessoas de origem africana." Neste caso nem se trata simplesmente de verificar que a Justiça portuguesa - num país cujo Código Penal, aponta a ECRI, não inclui norma algum que criminalize “explicitamente a expressão pública de uma ideologia racista” - deixe, por um motivo ou outro, passar impune o racismo que se expressa na esfera pública, com evidentes consequências na vida de quem o sofre. O problema é que o Estado português continua a confiar em entidades que diz estarem atentas ao problema mas de cuja independência face ao poder executivo (e, portanto, face às autoridades e aos funcionários cujo comportamento elas próprias têm de vigiar) o Conselho da Europa tem todas as dúvidas. É o caso da Comissão para a Igualdade e Contra a Discriminação Racial, a Inspeção-Geral da Administração Interna ou o Alto Comissariado para as Migrações, que têm competências para receber queixas, investigar e propor sanções, mas vivem na dependência direta do Governo.

O que tem denunciado o Conselho da Europa é o que há décadas dizem associações, ONG, a investigação social. Que somos uma sociedade racista como as outras, mas que o nega mais veementemente que a maioria e na qual, como agora acontece, se acusa de “incitação à violência” quem denuncia a própria violência racial. Que o racismo, disfarçado de bom senso que se julga consensual (“todos sabemos que cigano é traficante e que negro vive à custa da Segurança Social”), empapa as instituições sociais e se manifesta abertamente no comportamento de representantes do Estado como podem ser polícias, juízes, professores ou médicos. Que os mesmos que clamam contra as generalizações e que asseguram sempre que nas Covas da Moura deste país, tudo não passa de “casos pontuais”, associam comunidades inteiras e os territórios onde elas vivem a crime, “vandalismo”, “impunidade”.

Este país tem um problema com o Conselho da Europa. Mas tem um, muito mais grave, de falta de honestidade consigo próprio.

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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