Biografia para inglês ler

Pergunta-se: em que se baseia Jonathan Conlin para insinuar que a Fundação Gulbenkian não corresponde integralmente à vontade do multimilionário arménio?

Por ocasião dos 150 anos do nascimento de Calouste Gulbenkian, Jonathan Conlin publicou o livro intitulado O Homem Mais Rico do Mundo: As Muitas Vidas de Calouste Gulbenkian, que foi apresentado na Fundação com o nome do biografado, no passado dia 24.

Na contracapa do livro pode ler-se que se trata de uma “biografia definitiva“, escrita com total acesso aos arquivos da Fundação Gulbenkian. A obra de Jonathan Conlin, nomeadamente no capítulo intitulado “Epílogo”, que refere os últimos anos de Calouste, a sua vontade e as circunstâncias que envolveram a criação da Fundação, merece reparos, tem incorrecções e deixa no ar algumas graves iniquidades.

A obra de Conlin pode enquadrar-se numa interpretação que tende a achar que Portugal não seria merecedor de uma fundação como veio a ser a Fundação Gulbenkian, e que o destino adequado para uma tão importante instituição deveria ser o Reino Unido. Segundo tal corrente, terá havido alguma interferência do advogado português de Calouste, José de Azeredo Perdigão, o qual, segundo uma determinada citação de Conlin, não seria tão honesto e isento como se supunha (p. 379), interferência essa que terá sido decisiva e levado Gulbenkian a escolher Portugal, em prejuízo de outros países com os quais o testador havia tido uma relação mais próxima.

Na bibliografia consultada, nota-se que apenas um português é citado (António Barreto), em contraste com dezenas de autores estrangeiros, mormente ingleses. Poderá alegar-se que Gulbenkian apenas viveu os últimos 13 anos de vida em Portugal; contudo, nesses anos, alguns portugueses privaram de perto com Calouste, tendo inclusive escritos publicados sobre esse período.

Os vários textos de José de Azeredo Perdigão, advogado português do multimilionário arménio, trustee e presidente da Fundação durante 37 anos, todos eles publicados e acessíveis a qualquer investigador, passam a latere da biografia em questão. Tal ausência causa estranheza, na medida em que consubstanciam uma fonte particularmente credível dos últimos anos da vida do biografado, da criação da instituição e da própria colecção artística do testador, salientando-se com especial ênfase a ausência (nas fontes consultadas) da obra Calouste Gulbenkian Coleccionador, traduzida em várias línguas, e editada pela própria Fundação.

A biografia de Conlin aparenta encontrar agasalho na tendência britânica de menosprezar o papel de José de Azeredo Perdigão e de Kevork Essayan, genro de Calouste e seu colaborador durante 35 anos, igualmente trustee, já que, para Lord Radcliffe, “tornava-se pouco claro se as exigências de Azeredo Perdigão eram realmente dele, ou do governo português (...)", chegando a questionar “se estaria Azeredo Perdigão a falar como executor testamentário, ou seria um porta-voz de Salazar“ (p. 375).

Segundo Conlin, Salazar terá instrumentalizado dois executores testamentários com o intuito de favorecer Portugal, enquanto o terceiro trustee, Lord Radcliffe, inglês, queria uma fundação independente, independente do Estado, neste caso do Estado ditatorial. Considera ainda o autor que, quanto à possível criação de uma fundação pública, as ideias de Gulbenkian não reflectiam "a intenção de favorecer qualquer país em particular" (ibidem).

Como é por demais evidente, e sem necessidade de grandes considerações, Conlin ignora a realidade portuguesa dos anos 50/60. Em pleno Estado Novo, criar uma fundação privada e independente nem seria exequível se não tivesse, à partida, a concordância de Salazar. Reformulando, a Fundação ou era feita com o aval do ditador ou nunca teria existido.

E o certo é que a instituição foi criada em Portugal e se manteve distante face ao poder político fascista. Durante todo o período salazarista, durante todo o Estado Novo, pessoas perseguidas pelo regime, homens da oposição, artistas e cientistas, ou que eram olhadas pelo Estado Novo com desconfiança, encontraram um oásis, um espaço de liberdade na Fundação.

É anacrónico acusar José de Azeredo Perdigão de ligação ou de conivência com o Estado Novo, porquanto todo o percurso da Fundação foi de total dissonância com as linhas orientadoras do regime ditatorial, designadamente em sede cultural. A talhe de foice, recorde-se que nos anos 50 do século passado os governos britânicos não se distanciaram visivelmente do regime português.

Jonathan Conlin parece, como supra se aflorou, querer dar a ideia de que Portugal não seria o destino "natural" da Fundação Calouste Gulbenkian. Tratava-se de um país pobre, com a agravante de ser uma ditadura. Portugal nada diria a Gulbenkian. Seria apenas uma espécie de Panamá, que lhe dava benefícios fiscais, benefícios que países como o Reino Unido e a França não lhe iriam proporcionar.

No entendimento de Conlin, e no espírito de algumas vozes que cita, no final da sua vida Calouste não teria respeitado – no que à instituição da Fundação Gulbenkian tange – o seu próprio mantra de “verificar, verificar, verificar” (p. 379). Ora, Calouste Gulbenkian preparou meticulosamente aquilo que queria no seu post mortem. A feitura do seu testamento é de uma cautela e de um rigor tais que só uma pessoa extraordinariamente inteligente e com a sua sagacidade conseguiriam conceber, testamento esse que pôde expressar de um modo enxuto, e de fácil compreensão.

O testamento foi escrito pelo seu advogado português, José de Azeredo Perdigão. Calouste enviou o documento para Londres a fim de que os seus advogados ingleses atestassem se o português teria interpretado correctamente a sua vontade. Em 1953, aos 18 de Julho, em Lisboa, na Rua Latino Coelho, número 3, o notário do concelho, Fernando Tavares de Carvalho, na presença de duas testemunhas idóneas, dá a palavra a Gulbenkian, o qual outorga o seu testamento, na forma pública, anulando os pretéritos que o testador havia feito, designadamente o testamento de 6/5/1950, exarado no mesmo Cartório Notarial. No testamento ficou expressamente plasmada a criação de uma fundação privada, portuguesa, perpétua, com sede em Lisboa, sendo os seus fins caritativos, artísticos, educativos e científicos.

Embora Calouste Gulbenkian compreendesse a língua portuguesa, sem a dominar perfeitamente, foi o acto traduzido e lido em francês, língua que o testador bem conhecia, pelo Senhor Dr. Pedro Batalha Reis, membro da Academia de História, intérprete escolhido pelo próprio Calouste, que atestou também estar ao corrente da vontade do testador. O acto sucessório em apreço foi lido em voz alta (nas duas línguas), na presença simultânea do testador, das testemunhas, do intérprete e do notário, sendo o mesmo assinado por todos.

Pergunta-se: em que se baseia Jonathan Conlin para insinuar indirectamente que a obra, Fundação Gulbenkian, não corresponde integralmente à vontade do multimilionário arménio? Urge, por conseguinte, indagar onde quer chegar Conlin. Será que Jonathan Conlin quer infirmar o caminho até aqui trilhado, ou seja, levar a fundação a fazer maiores investimentos em Londres e, com isso, beneficiar o Reino Unido a quem, segundo o autor, Calouste tanto devia?

Ninguém pode, de boa-fé, negar que o percurso adoptado deu frutos, fez obra, beneficiou milhares e milhares de pessoas e instituições.

Citando um ditado do próprio Calouste Sarkis Gulbenkian, abundantemente reproduzido por Conlin, "os cães ladram" (p. 313) e "a caravana passa" (p. 332). Esperemos que a caravana continue a passar brilhantemente como o tem feito até agora, mantendo bem viva a memória do fundador, aqui e além-fronteiras. Com tudo isto e 62 anos passados sobre a instituição da Fundação, com tão boas práticas levadas a cabo e excelentes provas dadas, porque será, então, que ainda "ladram os cães"?

P.S.: Dedicado a Kevork Loris Essayan, colaborador exemplar de Calouste Gulbenkian durante 35 anos, executor rigoroso do testamento de seu sogro, pessoa discreta, culta e de fina inteligência, cuja colaboração tornou possível a criação da Fundação.

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