A dimensão europeia das cidades

Cidades como Barcelona, Palma ou a minha Valência sabem bem o que é ter áreas inteiras que falham às expectativas de visitantes e residentes e que, em simultâneo, só ficam bem nos saldos bancários de quem nelas consegue investir.

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Jonas Denil/Unsplash

“Temos um problema. As rendas começaram a ser incompatíveis com os rendimentos das pessoas. O número de fracções disponíveis para arrendamento de longa duração não pára de diminuir por causa do aumento das unidades de alojamento local e das transacções de edifícios para apartamentos de luxo. Temos investidores de países com uma economia mais forte do que a nossa.” As palavras nem são minhas nem se referem a Portugal: foram retiradas de uma apresentação no Instituto Alemão de Urbanística e descrevem a actual situação habitacional na capital da Alemanha. “Até agora, as previsões eram de crescimento populacional. Mas, se os preços continuam a subir, quem poderá de facto viver em Berlim?”

Berlim é ainda uma cidade de pessoas com rendimentos baixos onde, simultaneamente, 85% dos residentes são inquilinos (como acontece, em maior ou menor medida, no Norte de Europa). Apesar de as rendas terem aumentado nos últimos anos, ainda não subiram tanto como os valores de venda dos imóveis. Uma vez que esta segunda opção é mais lucrativa, a estrutura da propriedade está a mudar, o que tem uma consequência importantíssima: em vez de pessoas comuns, cada vez mais inquilinos têm como senhorios grandes empresas, estruturas tão profissionalizadas que possuem uma capacidade quase infinita de ditar as regras do jogo e torná-lo cada vez mais desigual.

Sirva o descrito para constatar dois problemas graves nas grandes cidades europeias. Um: perante um cenário de incerteza, como o descrito no primeiro parágrafo, o trabalho de planeadores e decisores torna-se menos eficaz. Dois: na actual correlação de forças, o Estado não consegue colmatar as visíveis falhas do mercado. Mais um? Tomem o exemplo da freguesia de Santa Maria Maior, em Lisboa: 10.000 eleitores versus 250.000 visitantes por dia; orçamento anual de seis milhões de euros, 65% do qual é para limpeza. Pergunta: pode um território que anualmente perde 5% de residentes ser interessante para os 70% de turistas que declaram visitar a cidade “por causa da sua autenticidade"?

Cidades como Barcelona, Palma ou a minha Valência sabem bem o que é ter áreas inteiras que falham às expectativas de visitantes e residentes e que, em simultâneo, só ficam bem nos saldos bancários de quem nelas consegue investir. Começa a ser óbvio que para aumentar o número de beneficiários da cidade é (mesmo) preciso aumentar o número de promotores e decisores da reabilitação urbana. Numa recente viagem de estudo a Berlim, organizada pela Fundação Friedrich Ebert, tive a oportunidade de constatar que esta estratégia é possível, mas exige a articulação de administrações, iniciativa pública e cidadania. Das visitas realizadas a um variadíssimo conjunto de entidades foi possível identificar dois grandes blocos de acção.

Uma primeira abordagem é a aposta num banco de habitação pública de dimensão suficiente para controlar os valores do mercado. Cá encontramos iniciativas que, conduzidas por dois tipos de actores, tentam contradizer a máxima que afirma que a economia tende a “socializar as perdas e privatizar os ganhos”. Por um lado, a cidadania está a organizar-se para obrigar o município a municipalizar fracções de habitação de empresas que possuam um número superior a 3000 unidades. Por outro, a intenção, por parte do próprio município, de comprar dezenas de milhares de fracções que já pertenceram ao Estado e que, actualmente, são propriedade da empresa Deutsche Wohen, conhecida por práticas duvidosas contra os inquilinos.

Uma segunda estratégia passa por estabelecer novas formas de relação com o mercado e os privados. Como? Promovendo Áreas de Reabilitação Urbana onde quem contribui para moderar os preços tenha mais facilidade em aceder aos incentivos do que quem contribui para os fazer disparar. Impulsionando o trabalho de técnicos de participação que garantam a presença dos cidadãos comuns nos processos de tomada de decisões. Com leis como a da “Proibição de utilização desconforme de unidades habitacionais”, que visa que o que foi concebido para morar não possa ser utilizado para lucrar. Exigindo que os novos empreendimentos tenham uma percentagem de habitação social. Incorporando mecanismos de banca ética que financiem projectos dos quais possam usufruir aqueles que não têm acesso ao crédito convencional.

Estes dois grandes blocos de acções são necessários mas, infelizmente, não suficientes. Para esclarecer de maneira satisfatória “de quem” e para “quem” deve ser a cidade, é necessário desenvolver estratégias transnacionais que conciliem as políticas nacionais com as regras do jogo no espaço europeu. Em Portugal, é muito o que se pode conseguir operacionalizando a Nova Geração de Políticas de Habitação e promovendo uma lei de Bases de Habitação que estruture as transformações necessárias. Mas não é tanto como o que se poderia atingir criando uma eficaz ponte com a possibilidade de legislar em Europa, tanto a partir dos nossos eurodeputados (atenção: eleições em Maio) como de Iniciativas de Cidadania Europeias (a qualquer altura, com um milhão de assinaturas de sete estados-membros).

O diagnóstico é partilhado. Por que não tornarmos então comum a solução?

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