“O que a tutela mais gostaria era de calar a voz do Museu de Arte Antiga”

Director do MNAA esteve na comissão parlamentar para deixar críticas ao diploma que o Ministério está a preparar para dar mais autonomia a museus e monumentos. As mesmas que vem fazendo desde o Verão. E para dizer que parece esgotada a capacidade de diálogo com a tutela.

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António Filipe Pimentel, director do MNAA, esteve quase duas horas a responder às perguntas dos deputados da comissão parlamentar de Cultura Rui Gaudencio

Um dia depois de a ministra da Cultura ter estado na Assembleia da República (AR), e de ali ter debatido com os deputados o Novo Regime Jurídico de Autonomia de Gestão dos Museus, Monumentos, Palácios e Sítios Arqueológicos, esta quarta-feira foi a vez de a comissão parlamentar de Cultura ouvir o director do Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA), que desde o Verão tem sido uma das vozes mais críticas ao diploma que está em preparação.

“Estamos a trabalhar no fio da navalha até que haja alguma desgraça”, disse António Filipe Pimentel, referindo-se à falta de meios financeiros e humanos com que tem de lidar diariamente o museu que dirige há quase nove anos, um espaço com 80 salas que tem em exposição mais de oito mil obras de arte. “Temos feito a denúncia sistemática [à tutela] da situação de ruptura do museu” e “esgotámos a capacidade de diálogo interno”, acrescentou este historiador de arte que anunciou a 2 de Janeiro não estar disponível para se recandidatar ao cargo de director, demonstrando fortes reservas à proposta de decreto-lei e fazendo um retrato negro do quotidiano dos museus em Portugal.

Pimentel foi à comissão parlamentar a pedido do PSD para esclarecer os motivos que o levaram a decidir não se recandidatar e para dizer o que pensa do diploma que Graça Fonseca quer ver fechado até ao fim deste mês e submetido o mais brevemente possível à apreciação do Conselho de Ministros.

E o que o director do MNAA começou por fazer foi, contrariando as declarações da ministra no dia anterior, concordar com o social-democrata José Carlos Santos ao dizer que o documento que está em discussão, e que o Governo gostaria de ter fechado em finais de Julho, “nasceu de forma enviesada, no secretismo patente”.

A socialista Carla Sousa contestou as acusações de “opacidade”; Bloco e PCP centraram as suas intervenções na falta de dinheiro e de pessoal e o PSD e o CDS quiseram saber o que é necessário para que Pimentel volte atrás e se recandidate, dando continuidade, disseram-no a centrista Vânia Dias da Silva e a comunista Ana Mesquita, “ao trabalho extraordinário de toda a sua equipa”. “Neste momento sei o ponto a que cheguei e não é possível seguir em frente por falta de recursos financeiros e humanos”, respondeu o director que deixará o cargo em Junho, assim como o seu director-adjunto, José Alberto Seabra Carvalho.

Munido de estudos e documentos estratégicos que a sua equipa elaborou nos últimos anos, com o Grupo de Amigos do Museu Nacional de Arte Antiga, consultores, juristas e outros colaboradores, e insistindo sobretudo nas conclusões saídas do MNAA 2020, o plano de desenvolvimento entregue à tutela em 2015, Pimentel referiu-se à atribuição do Número de Identificação Fiscal (NIF) aos museus e monumentos, que reclama há anos e que Graça Fonseca garantiu estar já previsto no novo documento, como “o ground zero” da autonomia, algo que será incapaz de resolver os problemas​ se o governo não se comprometer a reforçar o financiamento e os quadros de pessoal. “O NIF representa apenas o regresso à situação que tínhamos há dez anos e que já então era obsoleta. O paradigma hoje é outro.”

Museus diferentes

Desde que no Verão se ficou a conhecer a proposta de decreto-lei para a autonomia de museus e monumentos que António Filipe Pimentel já teve oportunidade de manifestar várias vezes as suas reservas em relação ao diploma, nas páginas dos jornais e fora delas.

Na primeira e única oportunidade que até aqui teve de reunir com a actual ministra — a 2 de Janeiro, na companhia dos restantes directores dos serviços dependentes da DGPC e dos directores regionais de Cultura — anunciou a sua indisponibilidade para se submeter a concurso depois de Junho.

Esta quarta-feira no Parlamento deixou claro várias vezes que a tutela não está interessada em ouvir o museu nem em deixar que o museu se faça ouvir — “o que a tutela mais gostaria era de calar a voz do Museu de Arte Antiga” —, insistindo num diploma que quer tratar de maneira igual coisas diferentes, ignorando que o funcionamento de um museu nada tem a ver com o de um monumento e sem perceber que os museus têm escaladas e vocações distintas. “Eu já fui director do Museu Grão Vasco. Sei do que estou a falar”, acrescentou.

É esta insistência na afirmação do MNAA como o "primeiro museu português", expressão que usa com frequência, que tem gerado algum desconforto mesmo entre os outros directores e responsáveis do sector, como Luís Raposo, que dirigiu durante 16 anos o Museu Nacional de Arqueologia e é hoje presidente do braço europeu do Conselho Internacional de Museus. Raposo tem acusado Pimentel de se esquecer do princípio fundamental de solidariedade entre instituições, segundo o qual os monumentos e museus que ultrapassam em receita os seus custos de funcionamento ajudam a suportar os deficitários.

A socialista Carla Sousa, que criticou Pimentel por não ter estado presente na discussão pública do diploma no passado dia 8 na Assembleia, lembrou-lhe que o MNAA está entre os serviços com uma receita inferior à despesa e que ao director falta uma “noção de conjunto” na hora de avaliar as dificuldades e as potencialidades no património. Na resposta, o historiador que tantas vezes tem dito que não é suposto que os museus, tal como as universidades e os hospitais, dêem lucro, ainda que devam procurar um equilíbrio das suas contas, voltou falar do reforço financeiro que tarda e acrescentou: “O princípio de solidariedade não pode ser o dos pobrezinhos. E o primeiro princípio de solidariedade deve ser o do Estado para com o seu património.”

Já a fechar a sessão parlamentar, o ainda director do MNAA convidou os deputados a visitar o museu, tal como aconteceu em Serralves, conversando com a sua equipa, para que melhor possam ter noção das condições em que ali se trabalha. E garantiu que a decisão de deixar o cargo é “ponderada”, “reflectida”, e não uma “birra”.

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