Afinal, museus e monumentos vão ter NIF, garante a ministra

Graça Fonseca foi à comissão parlamentar de Cultura dizer que, ao contrário do que estava previsto, os serviços dependentes da direcção-geral do Património Cultural passarão a dispor de identidade fiscal, satisfazendo uma das reivindicações dos seus dirigentes.

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MANUEL DE ALMEIDA/LUSA

A ministra Graça Fonseca foi esta tarde dizer à comissão parlamentar de Cultura que as instituições dependentes da Direcção-Geral do Património Cultural (DGPC) e das quatro Direcções Regionais de Cultura (DRC) vão, afinal, ter Número de Identificação Fiscal (NIF), para tornar mais eficaz a autonomia que o Governo pretende conceder-lhes. A medida é apenas uma das que estão previstas no âmbito do Novo Regime Jurídico de Autonomia de Gestão dos Museus, Monumentos, Palácios e Sítios Arqueológicos, a muito polémica proposta de decreto-lei que o executivo tem actualmente em mãos, e de que, adiantou a ministra, quer ter uma versão final "ainda em Janeiro", para levar a Conselho de Ministros.

“Esta autonomia apoia-se na equiparação a personalidade colectiva destas estruturas e, por essa via, no reconhecimento da sua identidade fiscal própria na diversidade da DGPC”, afirmou Graça Fonseca. “A obtenção do NIF, que em 2013 o anterior governo retirou aos museus, é o garante da devolução a quem sabe melhor as necessidades de cada museu, assegurando a responsabilidade partilhada e o comprometimento com os objectivos estratégicos definidos pela tutela.”

Entre as medidas complementares previstas no diploma, explicou ainda, estarão a delegação de competências no director, que passará a poder autorizar despesas até ao limite máximo previsto na lei, e a criação em cada equipamento de um fundo de maneio de cinco mil euros para gastos urgentes e pequenas intervenções.

Em resposta à deputada Ana Mesquita, do PCP, a ministra reconheceu que o NIF não resolve os problemas de recursos humanos e financeiros de museus e monumentos, mas assegurou que o Governo está a trabalhar para garantir um reforço dos quadros. Este ano, anunciou, e graças sobretudo PREVPAP (Programa de Regularização Extraordinária dos Vínculos Precários na Administração Pública), a DGPC deverá integrar 150 funcionários.

Na reacção à intervenção do social-democrata José Carlos Barros, Graça Fonseca rejeitou as críticas de que o presente diploma tenha sido preparado sem ouvir os directores e outros técnicos do património, que na semana passada se queixaram de ter sido deixados de fora. 

Polémico desde o início

O documento, resultado de mais de um ano de trabalho, iniciado ainda com Luís Filipe Castro Mendes como ministro da Cultura, levantou críticas assim que se tornou conhecida a primeira versão colocada à apreciação de duas das entidades representativas do sector, a Associação Portuguesa de Museologia (Apom) e o Conselho Internacional de Museus (ICOM, na sigla em inglês, a mais usada), a 11 de Julho do ano passado. Saudando alguns dos avanços feitos pela proposta de decreto-lei – como a possibilidade de os equipamentos virem a usufruir directamente de parte da receita que geram e de os futuros directores poderem vir a ser contratados fora da Administração Pública –, os ditos representantes apontaram-lhe de imediato falhas.

Quando, 12 dias depois, a proposta chegou aos emails dos directores de museus e monumentos afectos à DGPC, para dela terem “conhecimento, com carácter de urgência" e não para recolher contributos, como lembraram alguns deles na sessão pública de há uma semana no Parlamento, as críticas subiram de tom e generalizaram-se. 

“Sem um Número de Identificação Fiscal (NIF) como se pode falar de autonomia?”, perguntaram no Verão e voltaram a perguntar no passado dia 8 estes profissionais. E sem um orçamento condigno, sem um quadro de pessoal mínimo com competências acrescidas na área da gestão, de que serve a autonomia, seja qual for a sua forma ou abrangência?

Directores descontentes

A próxima ronda de conversas entre a tutela e os directores de museus e monumentos, que segundo Graça Fonseca acontecerá já na próxima semana, não deverá resultar num retrato muito diferente do que saiu da sessão pública do dia 8.

Reunidos a pedido da comissão de Cultura, dezenas de directores, conservadores e outros quadros superiores de museus e monumentos foram ao Parlamento dizer que as instituições em que trabalham estão à beira da ruptura. Falta-lhes dinheiro é certo, mas faltam-lhes também, e sobretudo, pessoas.

“Este é um mau documento. Os museus e monumentos mereciam mais. Nós merecíamos mais”, disse João Neto, presidente da Apom, lembrando que, no Verão, o Ministério da Cultura não foi capaz de adiantar que tipo de estudos tinham sido feitos para sustentar a nova proposta de decreto-lei, e insistindo no défice dos quadros de pessoal destes equipamentos. “Precisamos de recursos para criar conhecimento.”

Foi também na falta de quadros que insistiu José Alberto Ribeiro, director do Palácio Nacional da Ajuda, referindo-se a uma “proposta que fica muito aquém do que seria desejável” e que é incapaz de resolver os problemas de museus, palácios e monumentos. Não é apenas a “suborçamentação contínua e acelerada dos últimos anos” que o preocupa, é o “gravíssimo” estado a que chegaram as equipas: “Nos próximos cinco anos muitos dos museus vão ficar com metade dos seus quadros”, disse.

No Museu Nacional dos Coches, historicamente o mais visitado da DGPC, também há técnicos superiores em processo de reforma e outro que espera há 19 anos para ser integrado no quadro. Os conservadores são muitas vezes chamados a fazer trabalho de vigilância e até a directora já chegou a vender bilhetes. “Como se compreende que um museu como o nosso tenha um fundo de maneio de 175 euros?”, perguntou Pedro Beltrão, técnico da casa.

No Mosteiro da Batalha e no Museu Machado de Castro, em Coimbra, a situação repete-se, assim como as queixas da excessiva burocratização de uma DGPC “supercentralizada”. Na Batalha, Joaquim Ruivo, o director, já fez vigilância e pagou mesmo do seu bolso os 150 euros que eram necessários para arranjar um cano, porque para a direcção-geral tratar do assunto “com urgência” levava um mês e meio: “Eu não podia estar um mês e meio sem casas de banho e sem regar o jardim…”, descreveu. Em Coimbra, o Machado de Castro tem “uma equipa à beira do abismo”, garantiu a directora, Ana Alcoforado, explicando em seguida que, com a renovação, o museu triplicou a sua área expositiva, mas viu o quadro de pessoal reduzido em 20%. “Autonomia administrativa e financeira já houve. Sabemos o que é e sabemos lidar com ela”, lembrou ainda Alcoforado.

António Filipe Pimentel, director do Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA) há quase nove anos, não esteve no Parlamento na semana passada, mas o facto de se ter sabido a 2 de Janeiro que não iria recandidatar-se ao cargo em Junho, devido às condições em que o sector se encontra e a uma proposta de decreto-lei que vê como uma oportunidade perdida, veio reforçar as críticas ao documento.

Cronista convidado do semanário Expresso na edição deste sábado, Pimentel, falou do “histórico provincianismo embasbacado” de sucessivos governos na relação com o património do país, uma atitude que “rodeou os seus museus de um fosso intransponível de obstáculos, que acabou por tolher-lhes o desenvolvimento e a necessária afirmação”.

No mesmo texto, o director do MNAA lembra que vários executivos têm vindo a adiar o necessário “investimento estável” nas colecções e na equipa do museu, que continua a carecer de recursos humanos técnicos e administrativos, tendo hoje menos de metade dos funcionários de que dispunha há 32 anos. “Ante o colapso iminente da sua própria alma (o saber e o saber-fazer da sua equipa), haverá que injectar-lhe, de uma vez, os meios que o Estado sempre lhe negou. Desde logo, para poder voar. Mas tenho sérias dúvidas de que o ‘golpe de asa’ venha a ter lugar.”

Pimentel tem sido uma das principais vozes na crítica ao documento que a ministra da Cultura quer levar a Conselho de Ministros o mais brevemente possível. Graça Fonseca é a sétima titular da pasta que conhece enquanto director. 

O responsável do MNAA tem dito sucessivas vezes que o decreto-lei usa abusivamente a palavra “autonomia”, uma “ficção” sem que cada equipamento disponha de um NIF, e que ignora outros constrangimentos do sector do património. Tal como muitos dos seus colegas e alguns deputados da oposição, tem insistido que o diploma foi elaborado propositada e incompreensivelmente “em segredo”. 

Esta terça-feira, numa entrevista ao Diário de Notícias, o director do MNAA garantiu que, na reunião que Graça Fonseca teve com os directores dos museus e monumentos da DGPC a 2 de Janeiro, a atribuição do NIF no âmbito da actual proposta de decreto-lei "era uma matéria fora de questão", uma "situação a ver a longo prazo". Seis dias depois, a ministra afirmava à RTP que os serviços dependentes da direcção-geral do Património iam passar a ter Número de Identificação Fiscal, algo que lhes permite, entre outras coisas, adquirir bens e serviços ou receber directamente apoios mecenáticos. Esta tarde, e contrariando as declarações de António Filipe Pimentel, assegurou aos deputados que todos os directores tinham sido informados dessa alteração na já referida reunião no arranque do ano.

O director de Arte Antiga estará esta quarta-feira ao fim da tarde na comissão parlamentar de Cultura, a pedido do PSD.

Jóias da coroa serão museu

Nesta ida da ministra da Cultura à comissão, o CDS-PP, através de Vânia Dias da Silva, centrou as suas preocupações no remate do Palácio Nacional da Ajuda, cujas obras, disse, estão paradas desde Novembro. 

Falando no desvio dos custos inicialmente previstos (de 15 para 21 milhões de euros), a deputada quis saber quando estarão concluídas as obras e, sobretudo, se o facto de o Governo ter decidido entregar a gestão do futuro espaço em que estará exposto a título permanente o tesouro real português à Associação de Turismo de Lisboa (ATL) significa que o executivo vai confiar este património a privados. 

“A ATL é dona da obra e é uma associação privada, com a maioria de sócios privados. Como é que as jóias do património nacional são deixadas à gestão privada?”, perguntou a deputada. “Quem decide os preços dos bilhetes e as suas modalidades de desconto?”

Na resposta, a ministra da Cultura garantiu que não está, “de todo”, nos horizontes do Governo a privatização das jóias da coroa, e que o que vai haver na Ajuda a partir do próximo ano é definitivamente um museu, apesar de o protocolo celebrado entre a DGPC, a ATL e a Câmara Municipal de Lisboa ter optado por chamar-lhe “exposição permanente”. 

Graça Fonseca falou em “concessão” à ATL e deixou claro que o modelo do futuro museu está ainda a ser construído: “A DGPC está a trabalhar com a ATL para definir questões de bilheteira e de modelo financeiro.”

Ângela Ferreira, a secretária de Estado da Cultura, acrescentou que a obra no Palácio da Ajuda deverá estar concluída no final do primeiro semestre de 2020 e que, independentemente do modelo de funcionamento do futuro museu, a sua tutela científica ficará inteiramente a cargo da DGPC. 

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