O abismo é um lugar muito próximo

A crise dos refugiados pela escrita do paquistanês Moshin Hamid eleva-se da realidade e ganha consistência pela via fantasia. Finalista do Booker em 2017, situa-se numa intimidade difícil de suportar. Fala de um abismo onde todos podemos cair.

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Um escritor com uma inquietante capacidade de ler o seu tempo Andrew H. Walker/Getty Images

Mohsin Hamid (n. Paquistão, 1971) é inevitavelmente apresentado como um escritor com uma inquietante capacidade de ler o seu tempo e, ao fazê-lo, antecipar na sua escrita o futuro próximo. Em quase todas as entrevistas, em quase todas as recensões há menção a esse invulgar dote profético. Acontece em Passagem Para o Ocidente, romance finalista do Booker Prize de 2017, cuja edição em Portugal em 2018 passou bastante ao lado da atenção da maioria dos leitores.

É uma história de amor em tempo de guerra e da movimentação forçada das populações afectadas. “Pode parecer estranho que, em cidades à beira do abismo, os jovens continuem a ir às aulas (...), mas é assim que as coisas são, nas cidades e na vida, num momento estamos a tratar das nossas tarefas, como sempre, e no momento seguinte estamos a morrer e o nosso fim iminente não coloca um ponto final nos nossos inícios e meios transitórios até ao momento em que o faz.” Isto passa-se numa cidade de um país de que nunca sabemos o nome. Pode ser na Síria, no Iraque, no Paquistão. No momento em que Saeed e Nadia se conhecem e se apaixonam. É o ponto de partida para um livro onde a crise dos refugiados é retratada a partir do quotidiano de quem a vive. “A guerra na cidade de Saeed e de Nadia revelava-se, em si mesma, uma experiência íntima...” Por vezes, na fronteira do promíscuo, sem complacências com as necessidades e o amontoar dos corpos em fuga de sobrevivência. Uma quase violação, por exemplo, pode acontecer sem que ninguém a note, tal a massa em quem onde os corpos se movimentam num lugar onde em permanente transformação, fruto do medo, da violência, da morte. 

Saeed e Nadia saem dessa cidade em colapso, deixando para trás o pai de Saeed, que se recusa a acompanhá-los, carregando a culpa que esse abandono alimenta e uma certeza difícil de suportar: “quando migramos, assassinamos das nossas vidas aqueles que deixamos para trás.” 

Mohsin Hamid saiu um dia de Lahore no Paquistão, um lugar com semelhanças ao de Saeed e Nadia. Viveu entre Londres e os Estados Unidos, sabe o que é uma “fuga” planeada. Em Passagem para o Ocidente cria uma ficção que quer ter um pé acima do real, como para sublinhar a carga dramática da própria realidade, mais perceptível quando descolamos um pouco dela. Há passagens a remeter para as narrativas mágicas da tradição árabe, o que confere ao livro um lirismo contrastante com dureza da realidade onde se situa. Saeed e Nadia carregam em simultâneo essa tradição fantasista com as notas do seu tempo, um tempo transversal à geografia do planeta onde vivem. Os dois estão atentos aos sinais, ao que se escreve sobre o seu país nas notícias que lêem nos seus telemóveis quando ainda há electricidade e rede para se ligarem ao mundo. Ao longo do livro – um romance breve – Hamid sublinha o carácter actual das existências em simultâneo. Todos somos habitantes de um planeta onde qualquer movimentação afecta as relações existentes nesse mesmo planeta. As migrações em massa não são excepção, mas uma regra dramática capaz de fomentar ódios, sentido de injustiça, preconceito, exclusão, miséria. O mundo de Saeed e de Nadia é o mundo de Trump e do Brexit. “Os poucos canais locais que se encontravam em funcionamento diziam que a guerra estava a correr bem, mas os meios de comunicação internacionais diziam que estava a correr muito mal, na realidade, a aumentar um fluxo migratório sem precedentes que chegava aos países ricos, que erguiam muros e vedações e fortaleciam as suas fronteiras, mas aparentemente com um efeito pouco satisfatório.”

Saeed reza, Nadia não, embora vista a túnica que a sua religião dita às mulheres. Saeed fica cada vez mais nostálgico, Nadia sente o seu amor em perigo. Seguimo-los e com eles ganha corpo a noção de que a identidade nunca é um lugar estável e a sobrevivência é um território cheio de interrogações, contraditório, onde as noções de bem e de mal parecem tão mutáveis quanto o andar dos corpos. Da tal cidade em derrocada, a Mykonos, na Grécia, ou Londres, ou São Francisco. “... ali estavam famílias com um olho no futuro e bandos de homens jovens com um olho nos vulneráveis e gente íntegra e vigaristas e aqueles que tinham arriscado a vida para salvar os filhos e aqueles que sabiam como sufocar um homem na escuridão sem que ele emitisse um som.” É a vida num campo de refugiados e a ideia de vítima a livrar-se de qualquer tentativa de definição fácil. A violência está presente ou latente e é sobretudo uma violência emocional. Atravessa todo o livro, onde há lugar para a ironia, para a paixão, numa escrita fluida, rápida sobre o “tumulto do mundo”, com frases onde há uma necessidade de parar. Como esta: “Toda a gente migra, mesmo que as pessoas permaneçam nas mesmas casas durante toda a vida (...) Todos somos migrantes através do tempo.”

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