Ninguém está imune

Não é preciso acrescentar a palavra “exit” ao nome de mais nenhum país europeu para perceber que o "Brexit" é apenas o sintoma mais visível do confronto político vital que hoje se trava no interior da União Europeia.

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1. O Guardian informava há dois dias que cresce em flecha a venda nas grandes superfícies do chamado “Pacote Brexit” ao preço de 300 libras, que contém aquilo que é necessário para enfrentar uma saída sem acordo e o caos que se prevê para o dia seguinte. Desde enlatados a gel para fazer lume. Não. O Reino Unido não está em guerra contra o Continente nem o Continente está em guerra contra o Reino Unido.

Também não foi apenas o Reino Unido que mergulhou nos últimos dois anos numa crise política profunda que o tornou incapaz de definir e gerir uma estratégia de saída com princípio meio e fim para o "Brexit". Para os britânicos, mas também para a Europa, o momento da verdade joga-se muito provavelmente hoje em Westminster, com a votação do acordo negociado por Theresa May com Bruxelas e ratificado pelo Conselho Europeu. Nenhum cálculo permite a esperança de que seja aprovado.

May terá três dias depois de ver chumbado o seu acordo para apresentar uma alternativa. Ninguém é capaz de imaginar qual seja. Nem em Londres nem em Bruxelas. Jeremy Corbyn fala em eleições. A pergunta é: com que manifesto eleitoral, num partido em que metade defende, implícita ou explicitamente, o "Brexit" e a outra luta para ficar?

A mesma pergunta se pode fazer em relação aos conservadores. A ideia de pedir o adiamento do Artigo 50.º do Tratado da União Europeia que desencadeou o processo de saída não está contemplada em nenhuma decisão do Conselho Europeu nem na carta enviada por Juncker e Tusk no sábado passado à primeira-ministra britânica, dando-lhe novas garantias sobre o backstop irlandês. Mas prevalece a convicção de que nenhuma garantia adicional pode salvar este acordo.

2. Também é errada a convicção, alimentada no início do processo negocial, de que o "Brexit" é um problema britânico, justificado pela forma particular com que o Reino Unido esteve sempre na União Europeia e pela sua peculiar maneira de se ver a si próprio e ao mundo, ou que os outros 27 formaram uma frente unida para defender a Europa. Pela simples razão de que, do lado de cá da Mancha, as coisas não correm propriamente de feição para a União Europeia.

Em Paris, Emmanuel Macron enfrenta a maior crise da sua ainda breve presidência. Foi eleito em Junho de 2017 apresentando-se como o político capaz de derrotar Marine Le Pen com um programa de abertura e de reformas para o seu país e para a Europa, fazendo acreditar que a sua eleição tinha travado a onda populista e nacionalista. Foi há pouco menos de dois anos. Em Novembro, os gilets jaunes nasceram subitamente do nada, encheram as ruas das cidades, lançaram a violência contra os símbolos da República e criaram o caos. Obrigaram o exército a patrulhar as esquinas, como se Paris fosse uma cidade ocupada. Continuam a marcar presença todos os sábados. A violência voltou a recrudescer.

Marine Le Pen assumiu as reivindicações do movimento e quer fazer delas a sua plataforma política para as eleições europeias de 26 de Maio. Macron é o seu alvo principal – o Presidente elitista, distante, globalista, indiferente aos destinos dos que ficaram para trás, defensor acérrimo da Europa e descrito como aberto à imigração.

Enquanto May joga o seu destino e o do seu país no Parlamento, Macron tenta agora retomar o controlo do debate político, dirigindo-se directamente aos franceses. “Transformar a contestação em soluções”. Numa carta aberta aos cidadãos divulgada no domingo, Macron propõe quatro temas para um “grande debate” nacional: transição ecológica, fiscalidade, reforma do Estado e democracia e cidadania.

Não se rende totalmente. Avisa que o direito de asilo não será nunca posto em causa e que não tenciona reinstalar o imposto sobre as grandes fortunas. Ou seja: a França continuará a ser uma nação aberta aos outros e as reformas são para continuar. Correndo o risco de dividir o seu partido e o Governo, a questão da imigração foi incluída nas perguntas que lançou aos cidadãos. “Querem que fixemos objectivos anuais [para a imigração legal não europeia] definidos pelo Parlamento?”.

Do lado de lá da Mancha, a imigração esteve no centro da decisão popular sobre a saída da União Europeia. Theresa May cometeu o erro de subordinar a negociação ao controlo das fronteiras para todo o tipo de imigrantes, incluindo os cidadãos da União Europeia. Ao fazê-lo, inviabilizou imediatamente a possibilidade de ficar no Mercado Único, dando um nó que agora não consegue desatar.

3. Na Alemanha, a extrema-direita da AfD realizou no sábado o seu congresso na Saxónia. Foi adoptada a versão “branda” do “Dexit”, a saída da Alemanha da União Europeia. A AfD mantém-se persistentemente nos 14% das intenções de voto nas sondagens, o que corresponde ao que ganhou nas eleições de 2017, garantindo o estatuto de terceira força no Bundestag e de líder da oposição do Governo de “grande coligação”.

Matteo Salvini, o homem-forte do Governo de Roma, foi a Varsóvia na semana passada encontrar-se com Jaroslaw Kaczinski, o líder do partido que governa a Polónia (e quem verdadeiramente manda) e ambos terão discutido a formação de um grupo político no próximo Parlamento Europeu.

Na vizinha Espanha, o PP e o Cidadãos cederam a parte das reivindicações do Vox, o partido de extrema-direita espanhol que acaba de entrar em cena nas eleições da Andaluzia, ajudando a destronar os socialistas que governavam a região desde a refundação da democracia.

Em Haia, o liberal Mark Ruthe acaba de declarar-se incomodado com os “uma elite branca de Amesterdão que prefere o vinho” e está sempre pronta a criticar Trump, acrescentando que o Presidente americano tem razão quando critica “alguns erros” de muitas organizações internacionais. “Ele aponta para as coisas que não estão bem sobre o multilateralismo”. Exemplos? A NATO, OMC e a própria União Europeia. Não é preciso acrescentar a palavra “exit” ao nome de mais nenhum país europeu para perceber que o "Brexit" é apenas o sintoma mais visível do confronto político vital que hoje se trava no interior da União Europeia. Ninguém está imune.

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